Vamos juntos e livres por Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina.

1 - Os impasses e o roteiro


Caminante...    

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.

(De Antonio Machado (poeta espanhol) , extraído da obra Proverbios y Cantares)


Andar
(O Carteiro)

Andar andar andar andar
Quero léguas e léguas a fio seguir
E um dia enfim poder recordar
Cada sombra generosa em que parei pra descansar
Recobrando as forças
Pra novamente partir

Vida feita de estrada e terra a minha
Sem mapa sem destino sem direção
Só pernas e braços de um menino que caminha
Seguindo as batidas do próprio coração

Vou retirando cada pedra do caminho
Tenho meu bando embora sempre ande sozinho
Nem sei ao certo aonde a estrada vai dar
Só quero andar cansar parar, andar andar
Só quem cansa dá valor ao descansar
E quem não anda
Vê passivo a vida passar

Não me pergunte por que ando
Eu não sei
Só sei que o vento enxuga o pranto
Que chorei
E esse sorriso e esse canto
Levarei
Pra quem trouxer-me o acalanto
Que tanto
Procurei

(Outono de 2005)




    Confesso que demorei pra decidir e firmar o pé de que realmente faria essa jornada. Na verdade, antes  mesmo de embarcar na viagem anterior ( acesse para conhecer: http://infinitaamerica.blogspot.com/ ) eu já havia começado a dar uma pesquisada mais detalhada sobre Machu Picchu, as ruínas que tanto fascinam, e quando voltei dos "Veintinueve días en un coche nunca vienen nada mal", mais corajoso e experiente, coloquei no papel um projeto, que já existia na minha mente e coração, de percorrer em 3 etapas todos os países da América do Sul de língua española. E a segunda etapa seria justamente Bolívia e Peru (e o foco principal, Machu Picchu). Equador, Colômbia e Venezuela ficariam pra parte 3.
      Da data em que fechei comigo esse projeto, que despretensiosamente chamei de Infinita América, até a data da partida pra Bolívia, vários contratempos surgiram: possibilidades de ir pra outros lugares dentro do Brasil mesmo; vontade de voltar pra Buenos Aires e assistir chorando e sorrindo a algum jogo do Racing Club em Avellaneda; convites pra conhecer a Europa; vontade de abandonar essas ideias loucas de viagem e guardar dinheiro pra outras coisas; etc. Como bom virginiano teimoso, mantive o planejamento inicial. E não me arrependo.

      Foi difícil bolar um roteiro definitivo para essa viagem que a princípio incluiria apenas Bolívia e Peru, mas que acabou por abarcar o Chile e a Argentina também. As opções de roteiro eram vastas e quando se começa a pesquisar na internet aparecem opiniões e dicas das mais variadas. Depois de muito quebrar a cabeça decidi escolher cinco lugares principais como foco e fazer o roteiro com base nisso: La Paz, Lago Titicaca, Cusco/Machu Picchu, Deserto do Atacama e Salar de Uyuni. Decidi também que iria sozinho. Para poder misturar livremente minhas fantasias com a realidade, fazer meu próprio caminho ao caminhar, sem ter que dar explicações. Não se trata de egoísmo, mas uma vez mais na vida eu gostaria de poder fazer o que bem entendesse, sem ter que "negociar" com ninguém. Cada um com suas loucuras, com seus caminhos, com suas condenas, como diz a música...

     O fato é que saí de Araraquara com o roteiro pronto até Uyuni e com algumas opções a partir de lá. O final da viagem seria decidido durante a própria viagem, mas confesso que já parti fortemente inclinado a, depois do deserto de sal de Uyuni, conhecer o norte/noroeste da República Argentina do meu coração. E foi o que fiz, conforme abaixo.

Roteiro:

Araraquara - BRASIL
Corumbá/Puerto Quijarro - BRASIL/BOLÍVIA
Santa Cruz de la Sierra - BOLÍVIA
La Paz - BOLÍVIA
Copacabana - BOLÍVIA
Puno - PERU
Cusco - PERU
Valle Sagrado/Machu Picchu - PERU
Tacna/Arica - PERU/CHILE
San Pedro de Atacama - CHILE
Uyuni - BOLÍVIA
Salta - ARGENTINA
Cafayate - ARGENTINA
Puerto/Foz do Iguaçu - ARGENTINA/BRASIL
Araraquara - BRASIL


Introdução - Sobre blogs e viagens



meados de abril, 2011


     Escrevi isso numa quinta-feira, mas poderia tê-lo feito em qualquer dia da segunda quinzena de abril, o chamado abril pós-chuvas. Explico: somente dias assim, ensolarados, azulados e ventilados de início de outono, podem trazer à superfície certas lembranças adormecidas. 

    Numa sexta-feira de 2002, após sair mais cedo da faculdade e não encontrar companhia alguma (onde estava você, meu amigo Nikiba?) para comemorar o início do fim de semana tomando quantidades razoáveis de copos de cerveja em frente ao bar Brasileirinho, acabei indo triste e frustrado pra casa. Lá chegando, melancólica e rapidamente abri e esvaziei goela abaixo duas latas de Skol enquanto fingia assistir a algum filme nacional que passava na TV Cultura.
    Entre os goles fartos de cerveja eu tentava mirar e me concentrar no filme, mas não conseguia. A velha ansiedade que me toma quando percebo que há algo a fazer (ou alguma decisão importante a tomar), mas ainda não sei exatamente o que, me flertava agressivamente, tal qual operador de televendas insistente.
    As sensações e memórias da recém realizada viagem de ônibus de Uberlândia a Recife (salve Otto e Nação Zumbi) retumbavam na minha cabeça e me deixavam inquieto, com gosto de quero mais, me dando dicas de que a tal ansiedade  tinha algo a ver com isso: com viagens, com estradas. Peguei um caderninho simples (nessa época eu sequer imaginava que um dia ganharia um moleskine de presente) e numa estranha inspiração comecei a escrever os lugares que gostaria de visitar ou revisitar brevemente.
     Segue abaixo, com algumas alterações que a idade e a vergonha exigiram que eu fizesse, as notas daquela noite:

"Meus destinos de médio prazo
São Tomé das Letras - nas próximas férias;
Porto Alegre - na oportunidade que virá;
São Paulo - sempre "de vez em quando", pelo Corinthians;
Bolívia - quando a erupção fatal (como aquela do poemaocorrer;
Recife - retornarei pra enfim aprender o batuque do maracatu;
Belém - as paralelas ainda se cruzam;
Buenos Aires - por qualquer pretexto;
Avellaneda - pelo Racing Club, juro que vou;
De moto pela América do Sul - pelo Che que vive em nós; 
Machu Picchu - para agradecer à Pacha Mama."

     Reparem que são lugares acessíveis, onde qualquer rapaz simples poderia chegar. 


     Até 2002 eu não tinha medo ou vergonha de sonhar. Fazia planos, acreditava, de qualquer quintal fazia cidades. Depois, não sei o que se deu, mas passei por uma longa Idade Média, um período de pudor excessivo e ceticismo, de moral baixa, de fraca inspiração, de visão curta, de mala leche. Diante dos bambas que falavam da vida como se tivessem o mundo nas mãos, eu me apequenava, me achicava. Seria a passagem tardia da adolescência pra parte 1 da fase adulta? Não sei. Mas isso, graças a Deus, passou. Afinal, toda treva há de se iluminar um dia.
    Ainda que não me sinta capaz de segurar o mundo nas mãos, tenho a mente plugada e conectada no continente que me basta, essa vasta América do Sul, que cabe quase inteira nesse quase honesto coração. Num nível subconsciente aqueles sonhos che guevarianos de viagens e revoluções iniciados na década de noventa e resumidos no caderninho mencionado permaneceram recolhidos, esperando a hora certa de se libertarem.
     As pessoas, no fim das contas, se tornam o que pensam, o que sonham, o que buscam. Acredite, você pode mudar a si mesmo e inspirar as pessoas ao seu redor. Pode mudar o mundo, o seu  mundo, como 'os grandes' o fizeram. Quem garante que não há 'um grande' escondido debaixo da tua pele? Em espírito e essência, quem tu és? O que há por dentro desse escafandro de carne que carregas na vida terrena? Ah, se  conseguíssemos só pensar, sonhar e buscar coisas boas...


final de maio, 2011


     Como diz Manu Chao em Desaparecido, há um motor e uma dor aqui dentro que me impulsionam, me fazem caminhar, sair pro mundo, não há como resistir. Assim, não tive escapatória e resolvi cumprir parte da promessa que firmei naquele caderninho roto. E fui mesmo pra Machu Picchu agradecer as bênçãos! E pra alguns outros lugares também!

      Nesse blog, o Infinita América II, vou contar as peripécias e peregrinações que fiz em maio de 2011 durante 23 dias de viagem pelo Centro-oeste do Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina. Hablaré sobre cordilleras, desiertos de sal y arena, sobre soledad y libertad.


        Dividi o blog em 3 partes, três seções (ver na parte superior direita, Páginas do blog):

- Seção 1 - Início - nas páginas dessa seção constarão os Arquivos do blog, todas as postagens que eu for publicando, contando as histórias da viagem;

Seção 2 -Informações aos futuros viajantes - essa seção tem uma página única, onde colocarei pormenorizadamente todos os gastos da viagem, os meios de transporte utilizados, os lugares onde me hospedei, os preços dos passeios e outras utilidades que publiquei também no site mochileiros.com  como forma de agradecimento a todas as informações que obtive ali.

- Seção 3 -Trilha Sonora - essa seção, de página única também, vai reunir num só lugar as música compartilhadas por mim ao longo das postagens da Seção 1 - Início; pra cada postagem, escolherei pelo menos uma canção pra compartilhar e na seção Trilha Sonora constará uma espécie de coletânea de todas essas canções (pra homenagear quem massageou meus ouvidos e minha alma na solidão dos coletivos, ônibus e trens).

*  *  *  *  *

     No meu coração medianamente bondoso, desejoso de paz e quase sem fronteiras realmente cabia mais que um país. Vamos comigo por montanhas e desertos de pedra, areia e sal. Vamos juntos e livres. De solidão, já basta o tempo que passei  na estrada.

Prólogo - A esquina do meio

Para Marcos Rey e Julio Cortázar


Março/2011


    Eu fumava um cigarro imaginário na esquina de cima, sob o toldo amarelo da locadora do Charly, enquanto esperava a chuva fina de fim de março passar. Na esquina de baixo, onde não chovia, algumas moças tagarelavam e riam alto. Uma delas, vestida com uma calça jeans bem justa e uma blusinha preta, decotada, virava a todo momento o rosto para a direção em que eu estava. Outra, vestida com roupas sóbrias, não se virava para me olhar, mas de algum modo me via e sabia sobre mim segredos que eu não contara a ninguém.

    Da esquina onde eu estava era possível visualizar vários caminhos. Eu poderia optar por qualquer um deles, assim que a água parasse de cair, mas já sabia exatamente para onde ir, de modo que não era mais necessário pensar, só esperar. O toldo, agora mais bege do que amarelo, dava sinais de que não aguentaria a chuva por muito tempo. Era necessário que ela cessasse brevemente, pois eu não carregava guarda-chuvas e não poderia me molhar, em hipótese alguma.

    Às meninas da esquina de baixo, se juntaram alguns garotos com idade entre dez e doze anos. Eu conhecia o rosto de cada um deles, mas não conseguia me lembrar o nome de nenhum. O rosto e o corpo das moças também se tornaram familiares para mim, de repente. Algo estranho parecia acontecer. Todas aquelas pessoas da outra esquina haviam sido meus amigos de infância, de juventude ou de outras vidas, mas eu não conseguia recordar seus nomes.

    Assim que terminei o cigarro e joguei a bituca no mato molhado do terreno baldio ao lado, a chuva passou. Eu queria continuar olhando para as pessoas da esquina de baixo, queria lembrar o nome de todos que estavam ali, falar sobre nosso passado em comum, sobre o que tínhamos vivido juntos, mas não podia. A chuva havia cessado e eu já sabia exatamente qual esquina dobrar e que caminho seguir.