Vamos juntos e livres por Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina.

13 - No umbigo do mundo

 08/05/2011

Em quechua, idioma falado em muitas regiões andinas mesmo antes do advento do Império Inca, Qosco quer dizer "umbigo do mundo". Há várias versões sobre o fato daquela cidade ter recebido esse nome. O que passa é que Cusco foi a capital político-administrativa do Império e por isso era considerada o centro do mundo inca. Foi planejada no formato de um grande puma.

Trilogia Inca: para explicar e entender o mundo, simbolicamente, os incas o dividiam em três, representados pelo Condor, pelo Puma e pela Serpente. O Condor dizia respeito ao mundo espiritual superior e ao futuro; o Puma representava o mundo dos vivos e o presente; a Serpente falava sobre o mundo dos mortos e sobre o passado.  

     Claro que não consegui ficar esperando dar 10h00 naquela recepção tristonha para 'oficializar' minha entrada no hostel . Antes mesmo de algum funcionário aparecer pra iniciar a labuta, por volta de 7h00, encostei a mochila num canto do cômodo (bendito desapego), roubei um mapa de cima da mesinha, montei rapidamente um roteiro pra ser percorrido a pé (quando estou sozinho, sem falsa modéstia, sou bom nisso, mas quando estou acompanhado, o medo de que o outro não goste do caminho escolhido me inibe e bloqueia - trabalharemos essa questão, agora que estamos comprometidos seriamente) e saí a experimentar no rosto o vento sacro, gelado e cortante de Cusco. 

     Uma das igrejas da cidade ficava a 50 metros do hostel onde teoricamente eu estaria hospedado a partir das dez da manhã. A missa já havia começado. Pedi licença e me sentei num dos bancos mais afastados. A igreja estava lotada. Olhei demoradamente o lugar e percebi que somente eu permanecia de gorro. Pensei em tirá-lo, mas desisti, pois meus cabelos deviam estar de fazer medo em qualquer criança.

     Acompanhei a missa toda. Em Mendoza, na primeira etapa dessa fantasiosa Infinita América, eu já havia feito isso. Lá, lembro de ter me emocionado, mas em Cusco, embora tenha tentado me concentrar e chorar, não consegui. Na capital do Império Inca me pareceu muito difícil entender e aceitar que um só Deus ao mesmo tempo seja três.



Mito.

     Saí da igreja e iniciei minha percorrida a pé. Alguns museus estavam fechados e nos que estavam abertos só era possível entrar comprando o Bilhete Turístico (ver maiores detalhes nesse blog, na seção 2 - Informações aos futuros viajantes). Então, saí a andar sem rumo, pra sentir as ruas, as vielas, as construções de pedra, as ruínas pré-colombianas misturadas à arquitetura colonial. 

     Voltei ao hostel mais ou menos meio dia. Minha mochila havia sido guardada num lugar mais seguro. Acertei com o atendente o passeio pelos arredores da cidade, pra conhecer as antigas construções incas, e o pacote pra Machu Picchu. E dormi.

    A tarde, num micro-ônibus cheio de argentinos e europeus, fui fazer o tal passeio. E fiz amizade com Daniel, um peruano de Lima que acabou me acompanhando por mais alguns dias nessa viagem.

     Passei muito frio esse dia. Estava fraco, não havia dormido bem. Foi um dia de pouca inspiração e agora, ao escrever essa postagem, também me sinto pouco inspirado. Mas seguem abaixo algumas fotos que mostram como tudo é belo e interessante em Cusco e arredores.



 Viela.

Fonte de água viva. Jogue uma moeda no poço e seja feliz. Funciona! 

Jardim do Museu  Qorikancha - Repare o condor, o puma e a serpente 'desenhados' na grama.

Ruínas.



12 - Frio e insônia na recepção

08/05/2011

    De Puno a Cusco viajei num ônibus leito, muito confortável. O nível da empresas peruanas é muito bom, os ônibus são excelentes, com serviço de bordo, e pontuais. Saí de Puno por volta 22h00, novamente me arriscando numa viagem noturna pelas terras sagradas da América do Sul, e logo dormi, cansado demais das andanças pela cidade. O cochilo na catedral não havia sido suficiente para eu me recuperar totalmente. Acordei  quando o ônibus chegava em Cusco, umas 4h00 da madruga. Acordei gelado, com frio, me sentindo mal. Não conseguia acreditar que já estava na antiga capital do Império Inca. Sempre achei que seria um momento mágico chegar ali, mas confesso que o que eu mais queria naquele momento era dormir num lugar quente, seguro, de preferência na minha cama em Araraquara. Pobre mortal.

     No descarregamento das malas, um gringo chegou me perguntando algo em inglês (provavelmente queria confirmar se tínhamos chegado ao destino), sem ao menos pedir licença ou dizer bom dia. Normalmente me esforço pra entender, tento usar o pouquíssimo que sei e as mãos para me comunicar. Mas eu não estava para conversa, ainda mais em inglês, e mandei com um orgulho lascado um: "I don't speak english, amigo!". Junto com as palavras mandei anexo em pensamento, com votos de que ele me entendesse, uma frase virtual: "Se quer vir pra América do Sul, aprende pelo menos um pouco de português ou espanhol, seu gringo vacilão do caralho". Quanta agressividade. Quanto complexo subdesenvolvimentista. Coitado. Vai ver o cara até era legal, apesar de ser europeu ou norte-americano. Eu é que estava mal.

     Peguei minha mochila de guerrilha e fiquei na rodoviária esperando o tempo passar. Eu tinha reservado o hostel em Cusco quando estava em Puno e pra pagar mais barato tinha combinado de dar entrada somente a partir das 10h00. Esperei, esperei e esperei. Uma "pá" de peruanos me olhando de lado, querendo me oferecer bons preços por uma volta de táxi e eu com cara de merda, desencorajando qualquer tipo de aproximação com meu olhar de corintiano maloqueiro.

    Deu cinco da matina e não aguentei. Pensei, vou pro hostel, quem sabe me deixam entrar no quarto antes do combinado. Peguei um táxi e fui até o centrão de Cusco, perto da praça de armas. O hostel ficava numa viela escura, não havia alma viva pelas ruas. A fachada da hospedagem, cujas portas estavam trancadas, avisava: o lugar era 'bocada'. Feio de ver. Me deu tristeza. O taxista, sangue bom, bateu na porta, tocou a campainha, jogou pedras na janela, até que um jovem de 16 anos, mais ou menos, apareceu. Cabelos despenteados, cara de sono, tipo querendo me mandar pro inferno. Falei que tinha uma reserva. Ele me mandou subir. E ficar esperando na recepção, que estava vazia, até dar dez horas, quando um dos quartos seria liberado. Que mala leche.

     Coloquei a mochila num canto, sentei numa cadeira próxima à mesinha  e me debrucei, tentando dormir. Ocorre que eu sentia frio nos pés, nas mãos, no nariz. Não conseguia dormir. Saquei do bolso interno da jaqueta o livro "El diario del Che en Bolívia", que eu comprara em La Paz, e me concentrei na leitura, que descrevia os dias sofridos dos guerrilheiros, para me convencer de que o que eu estava passando ali naquela recepção fria e suja era fichinha, sofrimento pouco, bobagem. E deu certo. E fiquei com vontade de ter vivido no tempo da guerrilha pra lutar por uma causa. E ali, contente de estar lendo o diário do Che numa cidade onde eu sempre quis estar, meu frio passou e eu pude assoviar encantado e orgulhoso essa música que compartilho com vocês.

     E compartilho também o livro que me acompanhou naquela madrugada/manhã: El diario del Che en Bolivia.


'Seamos realistas, exijamos lo imposible...' y no nos olvidemos de soñar. Por Che y por Quijote. Los dos estarán en nosotros, siempre!

11 - As Ilhas Flutuantes e o sono justo na escadaria da catedral

LAS ISLAS FLOTANTES - São ilhas artificiais feitas a partir da totora, uma espécie de junco. Amarram-se esses juncos uns aos outros formando camadas que podem chegar a mais de três metros. Esses 'amarrados' (ou plataformas) flutuam na água. Para que não fiquem à deriva utiliza-se um tipo de âncora que fixa as plataformas. Há cerca de 40 ilhas, onde vivem muitas famílias, cada um em sua 'casa'. Algumas das ilhas chegam a ser maiores que um quarteirão.
OS HABITANTES E A ORIGEM - Os habitantes das ilhas são da etnia Uros. São indígenas. A ideia de formar as ilhas surgiu quando os Incas impuseram seu domínio na região. Os habitantes locais, pra fugir do dominador, mandaram-se com seus barcos para o meio do lago Titicaca e passaram a viver ali. Para irem de um barco a outro fizeram pequenas plataformas de totora, que flutuavam nas águas. E então, cansados de viver nos barcos, construíram plataformas maiores, as ilhas. Impressionante, né? A América do Sul é foda mesmo! 

Camisa do Brasil, boné do Racing, 'jaco' boliviano, coração corintiano e uma carranca de ressaca...

07/05/2011

     Pois então. O fato é que acordei com uma ressaca brava, pior do que o soroche, mas tive que 'dar a raça', levantar, tomar uma ducha, tomar um chá de coca com pão e partir. Veja que demoro, agora enquanto escrevo, pra me lembrar se tive que ir pra algum lugar esperar a van que me conduziria até o ponto de partida na margem do Titicaca ou se fui pego por ela na porta do hostel. Que coisa! Não me lembro!
     Mas lembro que os bancos do veículo estavam encapados com plástico ainda, de modo que o cheiro de 'novo' impregnava todo o interior. Tive que abrir a janela pra não enjoar. Que merda. Sempre a mesma cagada. Vinte nove anos, pelo menos doze de 'cachaça', e ainda não aprendi a beber. Preciso parar com essa fita.

     Não conversei com ninguém no curto caminho do hostel (ou de algum outro ponto) ao Titicaca. E também não conversei com ninguém no caminho, feito via barco, até as Ilhas Flutuantes. Encostei a cabeça no vidro e escutei o guia dar algumas explicações sobre o que iríamos encontrar nas ilhas de totora. O cara mandava a explicação em espanhol e depois emendava em inglês. Fluente. Fudido. Os peruanos são danados, inteligentes, vivos, especiais. E têm uma estrutura muito boa pro turismo, estão anos-luz à frente da Bolívia. Mas eu gostei dos dois países. E no futebol, se tiver uma partida entre os dois, não sei pra quem vou torcer. Se jogarem contra o Brasil, torcerei por eles.

Esquema montado pros turistas.

    Sobre as ilhas, não vou falar muito, melhor ver as fotos. Fiquei tão impressionado e tão feliz por estar ali que a ressaca passou. Que coisa louca pisar naquelas ilhas artificiais feitas por mãos humanas. E as mulheres cantando uma música aymara em espanhol, inglês, francês e até japonês? É tudo muito mágico, mas há algo que deve ser dito. O que sustenta os habitantes dali hoje em dia é o turismo, e eles estão bem preparados pra isso. Há toda uma artificialidade na recepção que eles fazem aos visitantes. E não há erro nenhum nisso. Mas que o encanto se perde um pouco, se perde. E fico triste com isso. Nesse mundo não há espaço pra fantasia, amigos. Nem nas Ilhas Flutuantes de Uros.

Totoras unidas que flutuam.

Variações dum mesmo azul.

Outra.

O guia, inteligente pra danar, explicando o funcionamento das coisas.


    O passeio foi na parte da manhã. À tarde fiquei perambulando, após almoçar legal num restaurante até que chique pros meus padrões. Comi algum prato típico, acho que lomo a la plancha. O lomo é uma parte, um corte da carne (no caso, comi carne bovina). O lomo a la plancha é como se fosse o bife grelhado, servido junto com alguns outros ingredientes e acompanhamentos. Nada muito especial, só pra citar.

    Nas minhas andanças por Puno, acabei encontrando o Thiago novamente, aquele rapaz que eu conhecera quando ia de La Paz a Copacabana. Gritei seu nome alto e rachamos de rir quando nosso olhar de encontrou. "Tá me seguindo, Fábio" ele falou. Falei que não, mas que era um prazer revê-lo. Saímos andando juntos. Passamos por um sebo, por uma feira de miniaturas e ele resolveu subir um morro onde havia a estátua de um pássaro, que deduzimos ser o condor. Então puxei essa música e ele me acompanhou, com o sotaque marcante dos cearenses.

     Ele encarou a subida. Eu não. Fiquei na escadaria da catedral me esquentando ao sol e olhando aquele céu bonito. E dormi ali, deitado, não sentado, isso nunca. Dormi "de sonhar". 
  
As escadarias onde sonhei.

         As cinco da tarde fui ao Positive Pub tomar uma pra me despedir da cidade, já que a noite eu partiria pra Cusco. Achei que o Michael estaria ali, conforme havíamos combinado, mas o picareta não apareceu. Então tive que beber sozinho mesmo. Mas tomei só uma, de verdade. Veja, na foto abaixo, o que havia no mural do bar:

Na viagem, além de fazer turismo, também aproveitei meu conhecimento de estatística e minha bagagem sociológica para pesquisar sobre futebol. Posso afirmar com a mais absoluta seguridade: o Corinthians é o time brasileiro mais conhecido na América do Sul. Falou de Brasil, falou de Corinthians! Tristeza pros outros, alegria pra nóis!



10 - La noche siempre me llama...

    06/05/2011

Calçadão de Puno.

  Puno tem uma peatonal (rua onde só é permitida a circulação de pedestres, tipo um calçadão) de uns 500 metros ou mais. As pessoas circulam alegres e felizes por ali até oito, nove horas da noite, deixando o lugar, que já é iluminado, muito movimentado. Depois que as lojas e os restaurantes se fecham, pubs, karaokês e danceterias continuam funcionando até altas horas.
   Foi nos arredores da tal peatonal que estiquei minha noite. Primeiro entrei num café, pedi um chá de coca, um petisco de acompanhamento (parecia uma bolacha de água e sal um pouco apimentada) e fiquei a observar um grupo de senhores vestidos feito dândis fora de moda que conversavam sobre política e literatura; achei aquilo fantástico, e foi meio que viagem no tempo, pois esse tipo de cena, no Brasil que eu conheço, só se vê em filmes que se passam no velho mundo. Que cena diferente. Homens velhos, alguns quase anciãos, tomando chá, fumando, falando sobre a eleição que estava para acontecer (Ollanta venceu  a filha do Fujimori, com a bênção de Pachamama), sobre eleições anteriores, sobre  Neruda e outros poetas chilenos e peruanos...como não caberia uma intervenção minha naquele papo e como eu estava muito ansioso e eufórico, até por conta de estar presenciando algo tão marcante como aquilo, saí dali rapidamente a procura dum lugar onde pudesse experimentar uma breja peruana e respirar o ar do Titicaca a longos haustos para me misturar definitivamente à gente de Puno e deixar meu rastro eternizado ali.

     Haviam várias opções, mas fiz a escolha certa ao entrar no Positive Pub (se não era esse o nome, era bem parecido com isso). O lugar tinha o teto forrado com bandeiras de tudo quanto é país, várias mesas redondas cheias de gente bebendo e fumando, um telão onde passavam clipes de bandas de rock, reggae e hip hop, e um balcão pequeno, onde um casal estava a beber e namorar. Encostei no balcão também, pedi uma Cusqueña (cerveja local) e fiquei ali respirando, olhando os clipes que passavam no telão (lembro que me emocionei ao ver esse ) e medindo a energia noturna que pairava no ar, antes de me entregar a ela. 
     O garçom era gente boa e tinha estampadas na manga da camisa as bandeiras de Peru, Bolívia, Jamaica, Brasil e Uruguai. Perguntou de onde eu era e ficamos conversando sobre os atrativos de meu Brasil. Dali a pouco um sujeito de gorro marrom encostou no balcão, a um metro e meio de mim. O garçom serviu-lhe uma Cusqueña antes mesmo dele manifestar palavra alguma. Devia ser freguês antigo. Ele encheu o copo lentamente, fixando bem o olhar no que estava fazendo, como quem admira uma obra. Ergueu o braço e me falou: salud, salud! Eu respondi e voltei a conversar com o garçom. Percebendo meu mau español, o recém chegado entrou na conversa e perguntou de onde eu vinha. E ficamos grandes amigos a partir daquele momento. Eu e Michael.
    Tomamos quatro garrafas no Positive Pub antes de nos mandarmos prum lugar mais movimentado. Michael me contou que estivera andando pelo Brasil durante um mês e que tem um irmão que mora em São Paulo. Percebi pelo seu jeito que era boa pessoa, confiável. Ele tinha aquele aspecto mestiço típico de certos peruanos e argentinos do norte, cujos olhos permanecem abertos quando o rosto está em repouso, ouvindo, mas se fecham e ficam pequenos quando falam ou se mexem pra expressar entendimento ao interlocutor. Era um tipo malandro, mas sangue bom. Sei reconhecer pessoas assim.

Positive Pub. Borracho?

     Do Positive fomos pra outro pub cujo nome me é impossível lembrar. Estava rolando som ao vivo, primeiro uma banda local que tocava covers bem arranjados do bom e velho rock in roll e depois uma banda de Cusco que estava sendo muito aguardada pelo público. Gostei mais da primeira, não por bairrismo, por gosto mesmo. Mas gostei da segunda também, embora não conseguisse ficar olhando muito tempo para o vocalista. Ele tinha os cabelos longos, meio enrolados, mas era calvo de modo que sua testa se prolongava até o meio da cabeça. Feio de ver, mas até que cantava bem.

   Michael conhecia todo mundo do lugar e foi logo me apresentando. Gostei da escuridão dali e como eu estava precisando emborrachar, a cerveja de 600 ml descia fácil, tomada no gargalo mesmo, tipo long neck. Fiquei contente e orgulhoso quando duas peruanas com quem conversei duvidaram que eu fosse brasileiro, dizendo que poderiam jurar que eu era espanhol. Sei lá, eu estava meio bêbado e solto. Quando estou assim, o castellano sai fácil, com um leve sotaque argentino. Mas elas deviam estar bem bêbadas também, sem conseguir ouvir, ver ou analisar nada direito.
    Ah, quando digo que fiquei orgulhoso de ser confundido com um espanhol não significa que não gosto de ser brasileiro, pelo contrário. É que se fui confundido, é por que meu espanholzinho estava até que mais ou menos. Gracias por las clases Fernando Pastucho. Gracias por todo Fito, Cerati y Darín. Gracias por hablar conmigo cuando estamos borrachos, compañero Cecel. Amo vocês.

   Três e pouco da manhã me mandei, pois teria que acordar cedo para o passeio do dia seguinte. Me despedi de Michael,  combinando encontrá-lo no dia seguinte ao final da tarde no Positive Pub, e saí sem rumo na noite. Ao invés de pegar a esquerda peguei a direita, ou o contrário, e me perdi legal pelas ruas e pela madrugada fria peruana. Pensei em voltar pro pub, mas encontrei um sujeito que me pareceu boa gente perambulando pela calle e pedi socorro.:
- Amigo, donde estás la peatonal? Estoy borracho y perdido!
- Amigo, dos calles abajo
(ou arriba, não me lembro)
- Gracias, hermano, muchas gracias! Viva el Peru, viva Puno! Amo el Peru! Amo ustedes peruanos!!Muchas, muchas, muchas gracias!
(abracei o sujeito, que me olhou espantado, e me fui, duas pra arriba ou pra abajo, e lá estava a peatonal, e aqui estou eu, vivo).

Como entrei no hostel?
Não me lembro.

9 - Da Bolívia ao Peru cabe uma viagem entre Argentina e Brasil

06/05/2011


     Foi tranquila a passagem da Bolívia para o Peru. A fronteira entre os dois países é 'de boa'. No Peru nota-se um pouco mais modernidade e profissionalismo. Em contrapartida, o povo boliviano esbanja simplicidade e simpatia. Me deu um aperto no coração ao carimbar o passaporte de saída da Bolívia, mesmo sabendo que voltaria dentro de poucos dias para conhecer Uyuni e o deserto de Sal, na reta final da viagem. Mas ao mesmo tempo me deu uma grande alegria saber que dentro de três ou quatro dias eu estaria chegando em Machu Picchu, objetivo inicial da viagem.


Peru e Bolívia. Duas bandeiras do meu coração. Vamos Evo e Ollanta, carajo!

    O percurso de Copacabana/Bolívia a Puno/Peru me rendeu três agradáveis horas de conversa com Maria Agostina, uma das três argentinas que eu havia conhecido na Ilha do Sol. Conversamos em português, porque ela era de Puerto Iguazu, na fronteira, e falava bem os dois idiomas. Eu falo mais ou menos o português, mal o espanhol e muito bem um certo portunõl inventado por mim mesmo, que contempla sobretudo termos futebolísticos, gírias de torcida, e outras pérolas apreciadas só por mim.

   Além de falarmos sobre a viagem e a vida, trocamos elogios mútuos, eu babando pela Argentina, ela pelo Brasil. Aliás, há algo que eu gostaria de comentar a respeito da relação entre esses dois gigantes sul-americanos e mundiais. Há, inclusive, livros inteiros dedicados a esse tema. Mas o que eu já notava anteriormente e pude confirmar nessas viagens é que há uma admiração e uma curiosidade recíproca entre esses dois povos. Por possuírem cada qual uma identidade própria ainda em construção, no real, mas já pronta, no imaginário, e de ambas as identidades do imaginário, um tanto quanto contrastantes, porém, complementares (tango versus samba, noite versus dia, tristeza versus alegria, garra versus ginga, Argentina versus  Brasil, respectivamente), serem reconhecidas local e mundialmente,  houve uma supervalorização estereotipada das diferenças, o que gerou toda essa rivalidade.

    Mas como estamos numa fase do processo evolutivo que nos leva a buscar o que está por trás da fumaça, além das aparências, a curiosidade e a boa vontade de um em relação ao outro emergiram implacavelmente. E como no geral só temos coisas boas a darmos um ao outro, nosso caso 'colou'. E o bom é que agora, depois do governo Lula recuperar a autoestima do brasileiro, podemos nos encarar de igual pra igual. Nariz empinado não cabe entre nós, por que somos hermanos. Brasil, Argentina, América do Sul, somos o coração do planeta. Exportamos humildade, amor e progresso. Nossa hora chegou, mas ao invés de castigo, daremos ao antigo colonizador a oportunidade de aprender conosco. Que eles saibam aproveitar, pois essa é a última chance. Por sorte, foi-se o tempo da vingança. Hasta la victoria siempre!


Nossa hora chegou. Mas temos que seguir juntos!
Bandeira, a minha é tua, e a tua é minha.

    Chegando em Puno, ainda iluminado por Deus e pelos deuses da Ilha do Sol, me despedi das hermanas, que partiriam direto pra Cusco. Segui numa van em direção ao hostel, combinei e paguei o passeio do dia seguinte às Ilhas Flutuantes, tomei o banho quente que eu ficara devendo ao meu corpo em Copacabana, conferi se havia papel higiênico no quarto, e parti. Parti pra tomar uma cerveja, pra fazer uma balada, pra me entregar nessa viagem. Eu estava feliz, eufórico, sem soroche, e a noite me esperava veloz. Afinal, una noche y un día o dos noches y dos días en la vida nunca vienen nada mal... de alguna forma de eso se trata vivir, amigos!!!
 

8 - Lago Titicaca - Copacabana e a Ilha do Sol

A impressionante e mágica Isla del Sol.


ALGUMAS COISAS INTERESSANTES:

COPACABANA (kotakahuana, no idioma indígena AYMARA, significa Vista do Lago): é a principal cidade boliviana na beira do Titicaca; ponto de partida pra famosa Ilha do Sol (Isla del Sol); localizada a mais de 3.800m acima do nível do mar; 

A ILHA DO SOL: ilha que fica no meio do Lago Titicaca; era considerada sagrada já pelos Tiwuanacos e também pelos Incas, que vieram depois; possui diversos sítios arqueológicos preservados; tem um governo autônomo e democrático, chefiado por um cacique indígena; na ilha se fala os idiomas espanhol, aymara e um pouco do quechua (língua oficial do império Inca).



05 de maio de 2011


Praça central de Copacabana

    Na praça central de Copacabana um homem distribuía panfletos do Hostel Sonia e se oferecia para guiar até a hospedaria quem topasse fechar negócio. Como eu não havia reservado nada e tinha lido algo nem muito positivo nem muito negativo sobre o Sonia no mochileiros.com, fechei com o sujeito. Dois franceses que por ali erravam toparam também. Tentei puxar assunto com os eles, mas ambos estavam um tanto loucos não sei se de álcool ou de algo mais e falavam o espanhol pessimamente. Desisti. E fui só, com meu soroche.
     Logo de cara não gostei do hostel. Achei sujo, desorganizado. Subi pro quarto, deixei as coisas sobre a cama, coloquei o celular (que na viagem só me serviu de relógio e despertador) pra carregar e saí pra rua atrás de algo para comer. Parei numa agência de turismo e paguei o passeio pra Ilha do Sol, pro dia seguinte. 

    Entrei num restaurante que só vendia pizzas. Não havia ninguém atendendo, somente duas moças sentadas numa mesa, aparentemente aguardando para serem servidas. Uma delas me deu sinal informando que havia algum funcionário ao fundo do restaurante. Cheguei mais pra dentro do lugar e avistei uma mulher num outro cômodo que parecia ser uma cozinha. Perguntei se estavam atendendo e pedi uma pizza pequena.

    Parei perto das moças e perguntei de onde vinham. Disseram ser argentinas e me convidaram pra sentar com elas. Enquanto aguardávamos as pizzas, trocamos algumas informações de viagem. Elas vinham de alguma cidade da província de Chubut, patagônia argentina, e tinham feito a travessia do Deserto do Atacama pra Uyuni. Fiquei interessado, porque eu também faria esse percurso. Porém, as informações que me deram não foram nada animadoras. Disseram ter passado um frio fora do comum no deserto do lado boliviano. Falaram com tanto drama (os argentinos são realmente dramáticos) e com tanta verdade que cheguei a ficar com medo. 
     
     Comi a pizza sem muita vontade (mas não deixei nenhum pedaço pro santo), me despedi das argentinas, dei uma volta rápida pelos arredores e voltei pro hostel. Minha ideia era tomar um bom banho e dormir bem, recobrando as forças pro dia seguinte, mas a água do chuveiro não esquentava nem a pau, então resolvi dormir suado e sujo mesmo, estilo guerrilheiro. 
     Eu estava cansado, com sono, mas não conseguia dormir. Uma cólica intestinal filha da puta, que logo evoluíu pruma diarréia fenomenal e sem fim, me capturou de jeito. A cada meia hora lá estava eu, fazendo careta, puto da vida. Pra piorar, não havia papel higiênico no banheiro e tive de me desfazer de dois pares de meias comprados especialmente para a viagem. Triste sina...


Perdida no tempo.


* * *

     
06 de maio de 2011


Pra Ilha do Sol é que se vai...


      Acordei cedo, tomei um chá de coca no hostel e guardei minha mochila numa sala ao lado da recepção, já que não poderia deixá-la no quarto (a diária expiraria) nem levá-la comigo pra ilha, pois estava muito pesada. Não reclamei sobre a água gelada nem sobre a falta de papel higiênico, mas fechei a conta olhando feio pra recepcionista, que na verdade, ao que me pareceu, era mãe do dono da espelunca. 

      Fui até a beira do lago, de onde partiriam os barcos pra Ilha do Sol. A travessia demorou cerca de 1h30. Pelo que observei, não havia ninguém sozinho, sem companhia, além de mim. Aparentemente todos estavam em grupos. No banco atrás do meu, sentaram-se três garotas. Falavam espanhol e usavam o 'vos' ao invés do 'tu'. Por isso, e pelo sotaque marcante, pude notar que eram argentinas. Somente uma delas falava, as outras só ouviam. 


      O barco não era tão pequeno, abrigava umas 30 ou 40 pessoas. Passei o trajeto todo calado, tentando identificar algum falante de português, mas não consegui. Mesmo assim pude perceber que haviam dois rapazes brasileiros a bordo. É engraçado isso, mas muitas vezes, só de olhar, sei que a pessoa é da Terra de Santa Cruz. 

     Ao descer do barco me juntei a um grupo que participaria da visita guiada pela ilha e pude confirmar que os dois caras eram brasileiros mesmo. Nos apresentamos e trocamos algumas ideias sobre o roteiro de viagem de cada um. Os dois haviam vindo juntos, estavam há quase um mês na estrada e eram amigos de longa data.  Fizemos o passeio juntos e acho que na verdade a relação entre os dois ia além da amizade.

Águas sagradas do Titicaca

     O passeio pela ilha durou umas três ou quatro horas e consistiu em percorrê-la a pé, parando nos sítios arqueológicos para ouvir as explicações do guia que se chamava Juan. Aquele homem falava com tanta propriedade, com tanta emoção sobre a ilha, que era 'seu lugar'; denotava um sentimento de 'pertencimento', de domínio ao pedaço que lhe cabia no mundo, e um orgulho tão grande de ter nascido e permanecido  ali; tinha uma voz que transbordava a humildade dos sábios e dos justos. Foi impressionante e mágico estar naquela ilha de beleza extraordinária, carregada de história, ouvindo o homem falar de coisas tão conhecidas e tão diferentes. Uma energia positiva pairava no ar e me peguei emocionado várias vezes, durante as explicações de Juan. 







Mestre Juan

     Na volta, eu e os dois brasileiros (Eduardo e Vinícius) acabamos fazendo amizade com as três argentinas que na ida tinham vindo no banco detrás. Mantive a impressão desagradável em relação à 'mais falante' do trio, mas as outras duas me pareceram muito legais, humildes, argentinas e sulamericanas de verdade. 

     Chegando em Copacabana ainda deu tempo de tomar uma cerveja com os novos amigos em homenagem ao Mercosul antes de resgatar a mochila no hostel e pegar o ônibus que me levaria à cidade de Puno, também banhada pelo Titicaca, mas em território peruano.