Vamos juntos e livres por Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina.

25 - O Salar de Uyuni

A cidade e o salar de Uyuni: Uyuni é uma pequena cidade da província de Potosí. É ponto de partida das expedições para o deserto de sal. Dizem os estudiosos que cerca de 40.000 anos atrás havia um gigantesco lago onde hoje se localiza o deserto salgado de Uyuni. O lago secou e dele restou a extensa planície de sal, a maior do mundo, conhecida como Salar de Uyuni.


   
* * *
17/05/2011


  Espetacular esse nome, não? Salar de Uyuni. Quando ouvi falar dele pela primeira vez já rolou um sentimento que seria equivalente, caso se tratasse de uma mulher, a uma paixão platônica. Paixão porque era algo que doía, que remoía, que causava desconforto, que desafiava, e portanto, ao menos no primeiro momento,  não era amor; platônico porque parecia algo dum outro mundo, algo que, embora me pertencesse num nível não consciente nem palpável, aparentemente não poderia ser alcançado nessa vida. Sempre tive mania de transformar coisas reais e possíveis em quimeras.
     O lado bom de se impressionar exageradamente com tudo é que me tornei um sujeito de imaginação fértil e tirei emoções absurdas de coisas absolutamente banais, transformando situações normais em algo grandioso. O lado ruim é que em muitos períodos (às vezes durante meses ou anos a fio) tenho crises de fantasia, crio problemas que na verdade não existem, vejo a realidade de forma incorreta, alimento pesadelos, somatizo doenças.

     Mas estamos aqui pra falar do tal salar que me desafiou desde o primeiro momento, como que me convocando: 'vem me ver que estou te esperando pra marcar sua vida pra sempre'. Sim, o maior salar do mundo (que fica aqui na nossa Bolívia, na nossa América do Sul, sim, senhor) decretou que eu não poderia morrer sem conhecê-lo. E como é difícil falar dele. Como descrevê-lo? Vou dizer que é uma enorme planície branca, que é impossível estar nela sem óculos escuros porque o sol reflete e cega de um jeito único, vou dizer que o lugar parece infinito, que quando olhamos de longe as pessoas ficam minúsculas, como formigas se esbaldando num mar de açucar. Vou falar, falar, falar e você não vai entender. 

* * *

     O horário marcado para saírmos rumo ao salar era 9h30 da manhã, se não me engano. Acordei bem antes disso, tomei café com o casal de ingleses e com o espanhol, saí pra dar um 'peão' pelas ruas de Uyuni. Comprei uma camisa (ficou grande, descobri depois), alguns cds de hip hop e rock boliviano e peruano que até hoje não ouvi. Comi uma empanada de carne e conversei uns minutos com Doro, que já nos esperava. Falamos sobre a situação de pobreza da Bolívia, sobre a política de Evo, sobre como o fato de não ter saída ao mar prejudica aquele país.. 

     E lá fomos nós respirar sal e sol. Primeiro passamos por um cemitério de trens, que antigamente eram usados pra o transporte de sal e outros minérios. Em breve, pelo que Doro disse, o cemitério será transformado num museu de verdade, organizado. Depois passamos por uma feira de artesanato de objetos de sal e logo a frente chegamos ao branco infinito.

Fique com as fotos:


Trem fantasma.




Boliviano naturalizado.

Não que eu queira 'pagar de gatão', mas fiquei bem nessa fotografia.



Todos são bem vindos.

24 - Da areia ao sal

16/05/2011

     
     Somente eu logrei uma boa e reconfortante noite de sono no gelado alojamento da Laguna Colorada. O resto do pessoal (pobres europeus e asiáticos) passou todo o café da manhã reclamando por não ter conseguido se  aquecer, por ter estranhado a poeira, por ter acordado várias vezes durante a noite. Dei um sorrisinho bem brasileiro quando me perguntaram e falei: "dormi de sonhar...com discos voadores".
     Tínhamos um dia inteiro de travessia pela frente, então, necessitávamos de muita força. Tomei chá de coca e  café, e comi alguns pedaços de pão com margarina. Temi que algum revertério me pegasse pelo caminho, o que obrigaria o simpático Doro a parar a Toyota para eu fazer o simpático 'dois' nas areias do Deserto de Siloli. Certamente, se isso ocorresse, eu não encontraria muita dificuldade, mas mesmo assim fiquei apreensivo, torcendo contra.
     O último banco da caminhonete (na frente com o motorista estava o inglês, que havia passado mal de soroche durante a noite; no segundo banco, as três mulheres; no último, eu e Francisco, sujeito mais que gente fina, que inclusive disponibilizou alojamento em sua casa, caso um dia eu queira conhecer a Espanha) estava muito menos confortável no segundo dia do que no primeiro. Doía a bunda, os joelhos, as costas, o pescoço. De vez em quando alguma das meninas perguntava se queríamos trocar. Eu dizia que não, que estava ótimo, afinal, soy hombre, carajo.
     Na verdade, o segundo dia foi mais difícil que o primeiro pra todo mundo. O pessoal não conversava tanto, nem se demorava muito nas fotos. Como eu havia curtido muito nosso entrosamento no dia anterior, fiquei meio ressabiado e comentei com Evi, a inglesa, sobre isso. Ela disse que todo mundo devia estar meio cansado. Concordei, mas achei que além do cansaço, as pessoas haviam sido capturadas pelo espírito do deserto, que obriga todos a se recolherem numa solidão de reflexão, que pode ser triste ou alegre. Naquele dia eu fiquei mais triste que alegre no período da manhã, mas à tarde reverti a situação.

     A paisagem do segundo dia é tão bonita quanto a do primeiro. Destaco abaixo, na foto, a Árbol de Piedra, uma formação rochosa que devido à erosão adquiriu o formato de uma árvore.

Árbol de piedra. O cara bonito aí sou eu.

     Almoçamos num povoado cujo nome não me lembro e paramos no meio da tarde numa cidade chamada San Cristóbal, onde há uma mina de carvão em atividade. Não visitamos a mina, apenas andamos um pouco pelas ruas, pela feira e compramos sorvete caseiro de uma senhora gorda. A russa não parava de tirar fotos e vira e mexe fazia pose e pedia pra um dos outros (normalmente eu) take pictures dela. Haja paciência.

     Chegamos em Uyuni no final da tarde. Deixei as coisas no quarto e saí sem tomar banho (já ia fazer dois dias que meu corpo não via água) pelas ruas da cidade que dá nome ao maior deserto de sal do mundo, o Salar de Uyuni. Na estação de trem comprei passagem para Villazón, na divisa com a Argentina, meu próximo destino e logo em seguida parei numa lan house para conferir o resultado da final do campeonato paulista (o jogo havia ocorrido no dia anterior) entre o meu Corinthians e certo time pequeno. Perdemos. Fiquei com vontade de quebrar a lan house, mas, ao invés disso, peguei uma cerveja e andei, andei, andei. Depois voltei ao hotel, tomei banho, jantei, escutei piada do espanhol Francisco, que sabia da minha torcida pelo Timão e também consultara o resultado na internet, e dormi. No dia seguinte, bem cedinho, partiríamos para o salar, outro ponto alto da viagem.

     Dá-lhe fotos, senão me puxam a orelha.

Bem louco. 



Vixe, fartô água no radiadô... 


 Mão aberta pra dar e receber. Mais pra receber, confesso.

 Dessa ela gostou.

Pescoço, mãos e câmera pra fora da janela. 







23 - Travessia

Cordillera, sal, soledad y... arena sin fin


O deserto não tem fim, caros amigos. Quem deu cores a esta viagem (e a este blog) foi mesmo o deserto de areia (e pedra), mais que o de sal, mais que a solidão, mais que as montanhas.

15/05/2011

    Acordei cedinho, considerando-me limpo e desinflamado (embora meus músculos doessem um pouco) devido ao banho frio que havia tomado à noite, antes de dormir. Botei o mochilão nas costas, segurei a bolsa menor nas mãos e saí do Chiloé, que àquela hora estava vazio. Caminhei devagar - as mochilas estavam mais pesadas do que nunca - pelas ruas de San Pedro de Atacama esperando encontrar algum estabelecimento aberto onde eu pudesse comprar água. Dentro de poucos minutos eu partiria pra travessia de três dias que se inicia em San Pedro, Chile, passa pelo deserto boliviano (continuação do Atacama), pelas lagunas coloridas (branca, verde, colorada...) e termina no deserto de sal, em Uyuni, Bolívia. Levar água e alguma comida é essencial. Eu só comprei água, pra depois poder falar pra todo mundo que sou quase herói.
    Cheguei em frente à agência, de onde sairia o micro que nos conduziria até a fronteira, cinco minutos antes do horário combinado. Um casal de ingleses já esperava. Apresentação básica (nome, nacionalidade, bom conhecer você, meio sorriso). A moça parecia amigável e discretamente curiosa, o homem não. Daí dois minutos chegou uma japa sorridente, cumprimentando a mim e aos ingleses com um aceno de cabeça e indo se sentar na calçada. Logo depois chegou a russa, que eu já havia conhecido na noite anterior, quando fui fechar o passeio na agência de viagem. 'Tô fudido pra me comunicar com esse povo', pensei. Mas eis que chegou o espanhol, já conhecido do passeio ao Valle de la luna, e o frio na barriga diminuiu.
    Foi chegando mais gente: um grupo de ingleses que iria conosco até a divisa Chile/Bolívia e dali seguiria de bike (paguei pau pra esses caras), um brasileiro, dois argentinos, uma penca de europeus. Na fronteira, a equipe do micro se dividiu em duas ou três e eu acabei ficando no mesmo grupo do espanhol, da russa, da japa e do casal de ingleses. O homem que conduziria a Toyota dentro da qual passaríamos horas e horas viajando, um boliviano, chamava-se Doro.



    O convívio dentro da caminhonete Land Cruiser 4X4 foi muito bom. A inglesa ouvia as explicações do guia, em espanhol, e traduzia pra russa, pra japa e pro marido, em inglês. E no começo, quando a russa ou a japa queriam falar algo comigo ou com o espanhol, passavam pra inglesa, que traduzia pra nós em espanhol. Com o passar das horas nossa comunicação melhorou, a vergonha foi embora, o medo de arriscar e errar também. Com muita mímica, um pouco de linguagem verbal, um pouco de intuição, conseguimos todos nos entender.

    O primeiro dia de travessia contempla a passagem pelas várias lagunas (ver fotos). Paramos pra jantar e dormir num barracão próximo à Laguna Colorada, de longe a mais impressionante de todas, a mais de 4000 metros de altitude.
    À noite, tomei um copo de vinho, comi e saí pra andar um pouco pelas redondezas. O espanhol, que tinha uma lanterna, me acompanhou. Paramos próximos à laguna e ficamos em silêncio a contemplar o frio, as estrelas, o barulho quase inexistente. Ele não aguentou por muito tempo e voltou ao alojamento. Eu permaneci por mais alguns minutos, pensando se realmente seria possível ver discos voadores ali ou no deserto de sal, conforme havia me dito certo dermatologista boliviano com quem eu conversara meses antes da viagem. E pude ter certeza que sim, era possível ver qualquer coisa ao lado da Laguna Colorada, numa altura de 4000 acima do nível do mar, com a temperatura abaixo de zero, no meio do desértico altiplano boliviano. Me emocionei. Agradeci pela oportunidade de estar ali. Não consegui pedir perdão pelas coisas erradas que fizera, pois isso não me tocava naquele momento. Fui deitar. E rapidamente sonhei acordado e depois dormi.




Laguna Verde.









Veronika, Evi, Andrew, Francisco e eu. 

Gêiseres.


Laguna Colorada.



Alojamento.

Entre um prólogo e um epílogo - A conta que não se acerta




    Foi sorte ou milagre encontrar aquela mulher no meio do deserto. A bicicleta me servira até o ponto em que o chão era mais de pedra que de areia. Depois, quando a areia fofa passou a predominar, tive que abandonar a magrela e seguir a pé. Para onde mesmo eu estava indo? Não sabia. Não conseguia me lembrar sequer qual fora o ponto de partida daquela jornada.
    O que importava no momento era fazer a tal mulher me ouvir. Eu sabia que ela me enxergava, mas uma aflição estranha me dizia que pra obter ajuda seria necessário falar. Falar alto sobre tudo. Gritar humildemente que tudo que eu queria era me livrar de mim mesmo, do calor crônico que assolava meus ossos, da parte ruim do meu passado, do corpo cansado, das virilhas doloridas, dos ombros encurvados que carregavam o peso de um espírito quase barroco.
    Quando cheguei mais perto, gritei com o resto das forças que tinha. A única palavra que saiu foi 'água'. Mas não era água o que eu queria, e sim libertação. A lembrança de filmes, livros e fotos de deserto, porém, forçaram minha boca a gritar o que gritam os perdidos: água. Mas era tarde, porque a mulher não estava mais ali. Desaparecera. Em desespero total tentei correr, mas minhas panturrilhas não obedeciam ou não existiam mais. Olhei feito louco ao redor e só vi areia e vento. Aliás, o próprio vento era feito de areia e logo meu corpo todo foi coberto por ela. Senti que ia desmaiar, embora isso nunca tivesse acontecido comigo eu podia prever, e minha vista, ao invés de escurecer, se encheu de azul, como se o céu que nos protege descesse sobre mim.
   
* * *

     Estava claro que aquilo era um sonho, mas eu não queria acordar nem deixá-la fugir, porque sentia que havia um acerto de contas a ser feito.

    Sede sem fim. Mais que a boca, meu corpo todo clamava por água. Camisa amarela; calça, bolsa e boné azuis; botina; borrachinhas nos pulsos; um relógio com o vidro trincado - os adereços que cobriam meu corpo que só queria estar nu. A vergonha escondida de sempre. O cenário de uma Djalma Dutra que não sai nunca da memória. A caixa d'água do SESC lá no final. E a moça de novo apareceu. Vinha de moto, como sempre, e parou pertinho de mim. Tirou da mochilinha uma garrafa, dessas de atleta, cheia de suco. Me sorriu um sorriso de companheirismo e compreensão e me estendeu a garrafinha esticando o braço direito como se estivesse um pouco tímida, enquanto dizia um 'oi' quase inaudível.
     Eu peguei a garrafa, mas não consegui tomar de pronto o líquido que havia dentro. Antes, chorei sentido. Não derramei lágrima alguma, mas chorei. Chorei o pranto dos orgulhosos que se seguram até o último momento e depois se debulham em soluços que parecem vir de um lugar mais profundo que a alma. Chorei o pranto de gratidão dos ingratos, a gratidão dos que se emocionam rapidamente e depois se esquecem e voltam a agir como se nada tivesse acontecido. Chorei o pranto da criança que fui, que chorava de raiva e amor quando mamãe chegava atrasada pra buscá-la no Jardim da Infância do SESI.
    E bebi o conteúdo da garrafinha de atleta numa golada só, sem perceber se a moça me observava ou não. Não identifiquei exatamente o que tinha ali, mas algo me dava a certeza de que era suco de manga, provavelmente artificial. Devolvi a garrafa vazia, senti no corpo o alívio desanimado do trabalhador braçal que, no meio do expediente, come e bebe de rosto triste, cabeça baixa e ombros encolhidos. Senti a tristeza e a humilhação de todos os trabalhadores marginalizados nesse coração chamado Brasil.
    Mas ela ainda estava ali, vestida em seu uniforme simples de moça trabalhadeira que sonha fazer faculdade e melhorar de vida, me olhando com um acolhimento quase maternal. Depressa me refiz, me senti íntegro de novo, me vesti do orgulho bom. Colocando a garrafinha vazia na mochila, ela disse um 'tchau' bem baixinho, deu partida na moto verde e sumiu na contramão.


* * *

    Acordei com a boca e uma das bochechas molhadas. Um velho, que hora parecia meu pai e hora parecia o avô que só conheci por fotos, segurava minha cabeça nos braços enquanto a mulher que eu havia visto no deserto tentava secar meu rosto com um pano um tanto úmido. Estávamos ainda em alguma parte daquelas areias sem fim, abrigados sob uma cobertura de madeira rodeada por árvores de uma espécie que não pude identificar.
   - Eu não consegui demonstrar o que realmente sentia e por isso meus sonhos e minha juventude foram embora junto com a moça da moto? - perguntei pro homem.
    - Há uma grande diferença entre o que você sente (sentia) e o que você manifesta (manifestou), filho.
    - E como faço pra remediar o mal que fiz e perdoar o que penso que me fizeram?
    - Não há remédio pra agora. O remédio está no futuro, é o futuro, o tempo. Tire o prego que fustiga seu coração. É melhor um coração marcado que um corpo estranho fazendo desgraça dentro do seu peito. Reze pra que os outros façam isso também. Há uma vida toda pela frente. Foi-se o tempo do perdão e em breve o tempo da culpa também fará parte somente do seu passado. Só restarão páginas em branco a serem escritas

     Olhei pro céu escuro, ainda apoiado nos braços de meu avôhai, e rezei pra que o futuro chegasse depressa.

22 - San Pedro de Atacama - imagens

Eu tomaria café todos os dias da minha vida nessa varanda.

Nesse branco não há como não estourar.

Rua de San Pedro. Ou seria a rua da frente da casa em que morei quando era pibe?

Lá no fundo o Vulcão Lincancabur. En el desierto atacameño, donde quer que mires él está allá.
As pessoas olhavam a infinita areia, que olhava as pessoas e dizia: aqui quem manda sou eu!
Aqui a areia cega, o céu inunda os olhos de azul e os corações se derretem.

Nem todas as fotos podem ser bonitas. :(
Sol atrás.

 


Falo e lua.


Sim, de novo o Lincancabur!

Dourado.
Aqui a vida segue no ritmo natural.
Uma estrada, uma bike, um sonho realizado, um amor...
O rosto de areia vermelha guarda o portal e rege os destinos.
Perro


Sem metafísica.

21 - San Pedro de Atacama - palavras rascunhadas

14/05/2011

DO MOLESKINE


     Acordo cedo, feliz, como o fazia nos fins de semana ensolarados do tempo de criança. Sinto uma alegria grande, quase cheia, completa, como a que sentia naquelas manhãs cada vez mais longínquas. O deserto com seu azul-marrom me trouxe isso. O céu espalhado arrebata, toma tudo pra si, suga mesmo os mais tristonhos pra dentro de sua felicidade perfeita, acabada e invencível. Não há como resistir.
     Os 'poréns' e 'por ques' que impedem os adultos de se jogarem sem medo pra alegria que se arreganha todas as manhãs são tragados pelo sol e pelo azul e perdem tanto o sentido que parecem nunca haver existido. Tchau perguntas sem resposta! Xô melancolia!
     Tomo um desayuno bom. No salão onde é servido o café da manhã estou eu, um grupo de brasileiros numa mesa logo ao lado e um trio de estrangeiros (acho que são italianos) numa mesa um pouco mais distante. Todos ali estão felizes, se nota. Até o Sebastián, funcionário da pousada, tem o semblante mais sorridente do que teria se estivesse servindo pães e cafés em alguma outra parte do mundo. Cada vez fico mais convencido: o deserto do Atacama é o lugar mais impressionante e especial por onde já passei. 
     Acabo de tomar café, mexo um pouco na internet e saio pra varanda, onde me sento feito pobre que mudou de vida. Abro o moleskine que ganhei, releio os rascunhos que já tomaram quase metade das páginas dele, e resolvo começar a escrever isso aqui. Tento caprichar. 
      Penso sobre a suposta ausência de vida no deserto. Sobre a escassez de vida visível, aparente. Seria essa falta de vida carnal que estaria facilitando tanto a comunicação minha comigo mesmo, com meu passado, com meu presente, com meu eu verdadeiro? E com os espíritos desencarnados? Seria mais fácil se comunicar com eles num deserto do que em outros sitios? E os anjos? O deserto seria o lugar ideal para se ver os anjos? Paulo Coelho pensou que sim. Eu penso que sim, também.

(Extraído, quase na íntegra, das anotações feitas no moleskine de viagem)


* * *

     Acordar cedo fez o dia render bem. Consegui dar uma boa explorada na cidade, passar e repassar pelas ruas, entrar novamente na igrejinha local e visitar o Museu Arqueológico Gustavo Le Paige ainda pela manhã. O lugar me impressionou. É um museu relativamente pequeno, mas muito bem organizado, montado de forma 'didática', o que facilita o entendimento da geografia e da cultura local para os leigos, como eu.


      Ainda consegui assistir num bar, perto de meio dia, o jogo final da Copa da Inglaterra entre Manchester City, de Carlitos Tevez, e Stoke City. O Manchester foi campeão, depois de não sei quanto tempo, graças ao argentino mais raçudo da história! Dale Carlitos!

      Aluguei uma bike à tarde, peguei um mapa dos arredores da cidade e saí a vasculhar palmo a palmo o entorno de San Pedro de Atacama. Andei, cansei, suei, descansei à sombra, fiquei sem camisa ao sol...e não me lembrei que a felicidade existe, pois eu já era parte dela, pelo menos naquele momento.

       Tomei umas cervejas com Sebastián, o figura que trabalhava na pousada, à noite. Ele me contou que há dois anos havia ido pra Nova Zelândia sem nem saber direito que idioma era falado lá. Aprendeu inglês na marra e agora estava juntando uns dollares pra dar outra escapada pra algum lugar interessante desse mundão. Depois que voltei da viagem até tentei falar com o persona, mas ele não responde. Pelo que consta na página de seu facebook, atualmente ele está em Washington, USA. Sebastián, aqui entre nós: há muitos lugares mais interessantes pra você conhecer, hermano!

* * *

Encontre todas as informações sobre San Pedro de Atacama em http://www.sanpedroatacama.com/.

Aguarde as fotos no próximo post.

      
"...cuándo te busco no hay sitio en donde no estés..."

Cactus, da inalcançável obra Fuerza Natural, do inolvidável Gustavo Cerati. Desculpe se insisto, mas é que esse álbum me acompanhou a viagem toda. 

20 - San Pedro de Atacama - "siento un déjà vu"

"...eu penso que não sei quem sou, mas lembro bem, com a mente e o coração, do menino que fui, e em alguns momentos nobres essa sabedoria é a que me basta..."

13/05/2011

    'Eu já vivi isso antes', foi o que pensei logo ao descer do ônibus em San Pedro de Atacama e caminhar alguns metros pela rua de areia e terra em direção a alguma hospedagem confortável. O céu estava absolutamente sem nuvens, de um azul totalmente arrebatador, que invadia meus olhos sem pedir licença. A areia e as pedras se estendiam infinitamente. Marrom, o chão, azul, o céu. Fabulosa e fatal combinação.
    Soprava uma brisa fria. Na verdade, o sopro estava forte, era quase um vento. Não dava pra andar sem blusa de manga comprida, mas se ficasse parado ao sol o calor 'pegava' e a vontade que dava era de tirar a camisa e os sapatos e de se sujar naquele chão que me era tão familiar, embora eu nunca tivesse pisado ali.

* * * 

    A rua que passava em frente à casa de minha infância era de chão batido. A terra e a grama daquela rua, e do pasto que ficava ao lado, devem estar impregnados de alguma forma nos poros das plantas dos meus pés, na minha cara, nas minhas unhas, no meu corpo todo, porque eu literalmente me misturava aquele chão. O lugar onde nasci e cresci se tornou parte do meu espírito, moldou meu caráter, meu olhar, minha emoção. Definiu as coisas fundamentais que viriam (e vieram), pro bem e pro mal. Eu nem sempre lembro e nem sempre tenho consciência disso, mas em San Pedro de Atacama, logo que cheguei, essa lembrança veio feito tsunami, e inundou meu coração.

* * * 

     Depois de curta caminhada vi a Pousada Chiloé e de pronto entendi que ali era o lugar onde eu deveria me instalar. A peruana (sim, eu estava no Chile, mas a atendente era peruana) mais simpática, humilde e amável da história da viagem me atendeu, mostrou as dependências da estalagem e bem depressa topei ficar.
    
    Era manhã de sexta-feira, mas parecia uma manhã perdida e ensolarada de domingo outonal, daquelas em que meu pai ficava deitado no tapete, com a porta da sala aberta pra entrar vento, assistindo campeonato italiano na TV Bandeirantes; eu ficava um pouco ali com ele, depois saía pro quintal pra olhar o céu e as árvores do pasto, voltava pra dentro e ia até a cozinha, voltava pra sala, sempre descalço, só esperando a macarronada ficar pronta e minha mãe chamar: “ta na mesa”. 

   Almocei num restaurante bom e barato, sozinho. Andei pelas ruas da cidade arrastando os pés pra levantar poeira e sentir o cheiro do chão. Visitei a igreja local, a única. Fui de excursão pro Valle de La Luna, uma formação rochosa e arenosa no meio do deserto que lembra muito a paisagem lunar. Conheci um francês, um espanhol e duas holandesas. Conheci o pôr-do-sol do deserto do Atacama. Conheci as gigantescas empanadas atacameñas e parte da não tão agitada noite de San Pedro. E fui dormir. E prefiro agora me calar e deixar o resto por conta das fotos que virão nas próximas postagens desse blog. As imagens suscitam menos metafísica que as palavras, e no deserto do atacama não é necessário metafísica alguma.




"...Todo es mentira, ya verás
La poesía es la única verdad
Sacar belleza de este caos, es virtud
O no?

Tanto pediste retener
Ese momento de placer
Antes de que sea tarde
Vuelve la misma sensación
Esta canción ya se escribió
Un mínimo detalle que cambió

Cerca del final
Sólo falta un paso más
Siente un déjà vu
Déjà vu..."

(Trecho de “Déjà vu” Letra e música de Gustavo Cerati)




 Retrato de Alberto Caeiro - por Cristiano Sardinha.


"...O mistério das cousas?  Sei lá o que é mistério! 
     O único mistério é haver quem pense no mistério. 
     Quem está ao sol e fecha os olhos, 
     Começa a não saber o que é o sol 
     E a pensar muitas cousas cheias de calor.   
     Mas abre os olhos e vê o sol, 
     E já não pode pensar em nada, 
     Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos 
     De todos os filósofos e de todos os poetas. 
     A luz do sol não sabe o que faz 
     E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica?  Que metafísica têm aquelas árvores? 
     A de serem verdes e copadas e de terem ramos 
     E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,  
     A nós, que não sabemos dar por elas. 
     Mas que melhor metafísica que a delas, 
     Que é a de não saber para que vivem 
     Nem saber que o não sabem?..."
(Trecho de “Há metafísica bastante em não pensar em nada” – Alberto Caeiro).