Vamos juntos e livres por Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina.

28 - Cafayate, timidez e política

19/05/2011


     Acordei muito cedo, com uma leve ressaca, dispensei o desayuno e desci as escadas do hostel em direção à rua, pra esperar a van que me levaria a Cafayate. O simpático e afeminado recepcionista disse que eu poderia esperar ali dentro, pois tocariam a campainha pra me chamar, mas preferi ir pra rua. Sentei-me na beiradinha da mureta do ponto de ônibus, ao lado duma mulher bem humorada que esperava seu circular. Ela puxou assunto comigo. Se encantou por eu ser brasileiro, por estar viajando sozinho, e me contou partes importantes de sua vida. Trabalhava de empregada doméstica em casa de gente importante, fora casada mas estava separada do marido há um bom tempo, tinha dois filhos jovens.  Mostrava otimismo e resignação. A resignação racional de quem tem que se virar pra sobreviver e lida com isso natural e orgulhosamente. Mostrava simplicidade. Não lembro exatamente do rosto da mulher, muito menos do nome, mas sua voz e as palavras que falou estão bem guardadas. E ficaram de exemplo. São pequenas conversas de viagem, como essa, que permanecem e se fixam na memória das emoções.  Exemplos de simplicidade não faltam, falta certa atitude pra segui-los.

 

    A van atrasou uns minutinhos. Fui o último a ser pego e acabei indo na frente com o motorista, um gordinho corado, falante dum espanhol marcado e bem articulado, possuidor de boa dicção. Falava muito, o homem, explicando cada paisagem por onde passávamos, contando histórias.  Trocava os cds a todas hora. Colocou um do Roberto Carlos, em homenagem ao Brasil. Uma dupla de senhoras originárias de Buenos Aires, mãe e filha, delirou com as músicas do rei. Rei pros outros, não pra mim. 
     Além das porteñas, havia dois casais de espanhóis, uma moça da Alemanha e um casal de alguma parte da Argentina. Todos simpáticos e falantes. Me ofereceram chicletes, água. Não aceitei e demorei pra me entrosar. Fiquei tímido no meio daquele povo. Pareciam todos mais adultos, maduros, na vibe do turismo familiar, não da aventura, como eu.




* * *


     A cidade de Cafayate é muito bonita, pequena e charmosa, cheia de bodegas. O trajeto até ela é mais bonito ainda, conhecido como 'quebrada de Cafayate'. Na verdade, a estrada que liga Salta a Cafayate segue o curso do rio de las Conchas. O caminho é chamado de quebrada por ser mais estreito que um vale comum. Possui formações rochosas cuidadosamente esculpidas pelo vento e pela chuva, ao longo do tempo.




O caminho...












A pequena cidade...




 Música folclórica salteña...


     




    Na volta, o pessoal veio conversando de política. O espanhol dizendo que a crise vivida por seu país se devia ao fato do governo haver liberado, durante um certo tempo, crédito muito grande para a população. Era possível comprar de tudo, e pagar em não sei quantos anos. Entrei na conversa e disse que o Brasil estava indo pro mesmo rumo e que quebraria daqui uns anos se não mudasse. E o papo se estendeu...o motorista criticando as políticas de apoio aos mais pobres praticadas por Cristina Kirchner, que vão na linha do Bolsa Família, implantado por Lula. Entrei na conversa de novo e disse: "quando praticada na Europa, esse tipo de política, dizem, é filha do welfare state, quando praticada na América do Sul, é chamada de populismo; no Brasil, o que o Lula fez deu certo, e aqui vai dar também". A van toda aplaudiu minha comparação simplista e verdadeira. E pude ir orgulhoso, depois de me despedir de todos e tomar um banho no hostel, pruma casa onde tocava música folclórica salteña, algo mais ou menos equivalente ao nosso sertanejo raiz. Haja cerveja pra tanta sede!


"Moja tus pies en su arena,
entra a esta tierra viajero
y bebe de ese venero
que tiene su gente buena,
si hay algo que te encadena
y queda dentro de ti,
cuando te vayas de aquí,
llévate para tu viaje
de Cafayate el paisaje
y este cielo Calchaquí."

José Ríos

27 - Quanta estrada...

18/05/2011


     De La Quiaca a San Salvador de Jujuy foram seis ou sete horas de estrada e de San Salvador pra Salta, mais duas. A primeira etapa ocorreu num ônibus simples, cheio da gente humilde do norte/nordeste argentino. São pessoas de origem indígena, sofridas, nada parecidas com  porteños,  rosarinos ou cordobeses. Não vou dizer que a viagem foi maravilhosa, simplesmente pelo fato de eu estar na Argentina. Foi osso passar tantas horas dentro do busão depois de ter viajado a noite inteira a bordo dum trem apertado.
    
     Diversos homens mascavam a folha de coca do jeito que só os argentinos do norte conseguem fazer. Eles pegam uma porção média de folhas e as colocam num dos cantos da boca, prensando-as na bochecha  e deixando-as ali durante muito tempo, às vezes durante horas. Na verdade, não mascam a folha, mas vão engolindo a saliva misturada com o caldo da erva.

    Meu humor estava um pouco abalado. Não gostei da forma como fui atendido na rodoviária de La Quiaca. O rapaz me vendeu a passagem dizendo que o ônibus iria direto para Salta, mas depois fui descobrir que só iria até San Salvador de Jujuy e de lá teríamos que embarcar em outra condução. Eso no me gustó nada. Dentro do ônibus, uma bagunça só. Muita gente, sacolas e malas pra todo lado, 'mastigação' generalizada de la hoja, alguns borrachos.

    Fiquei um tempão isolado numa leitura qualquer, esperando o humor melhorar pra eu poder socializar. E como sou um cara bão, rapidamente fiquei bem e puxei conversa com o rapaz que estava sentado ao meu lado mascando tranquilamente suas folhas de coca. Ele tinha a mesma idade que eu, se chamava Juan, era natural de alguma cidadezinha do interior da província de Jujuy e vivia do comércio de roupas, comprando de regalo na Bolívia e vendendo na Argentina. Rapaz simples, inteligente e de personalidade. Viu o livro do Che que eu carregava e disse: 'não gosto desse tipo'. Perguntei o motivo. Ele disse que achava aquele revolucionário argentino um assassino. Não discuti. Eu estava mal das palavras naquele dia e não conseguia entender tudo que Juan falava.

      Em San Salvador me despedi do hermano com um aperto de mão forte. Tomei um lanche barato na lanchonete da rodoviária e esperei impacientemente a chegada do ônibus que me levaria até a cidade de Salta, conhecida como la linda. O espanhol Francisco, que a essa hora já devia estar curtindo a beleza exótica e caótica de La Paz, me dera boas referências sobre Salta e seu povo. Eu estava animado, mas ao mesmo tempo muito cansado, necessitando de um banho quente e de uma boa cama.

     A viagem de San Salvador de Jujuy a Salta ocorreu num ônibus de dois andares. Fiquei no mais alto, só curtindo o visual da ruta argentina, a paisagem já familiar, a atmosfera típica de lugares já conhecidos, ainda que nunca frequentados. Na Argentina me sinto assim, já falei sobre isso. E repito. Grande experiência conhecer um país que sempre despertou interesse e mágica em mim. O triste foi (e é) perceber que a imaginação sobre algo desconhecido e admirado é sempre mais bela e perfeita do que a realidade que o conhecimento desse algo traz. Exemplos: A Argentina da memória que tenho dos meus sonhos e imaginações é melhor que a Argentina que descobri; a ideia que sempre tive do futebol em geral foi se desvanecendo à medida que passei a conhecer a realidade e os bastidores futebolísticos; a idolatria que eu exercia em relação aos meus músicos favoritos se perdeu conforme fui percebendo que são tão humanos como eu. Enfim, estou repetindo o óbvio, mas...a realidade desanima. Continuemos sonhando, então.

* * *

     Salta não leva o título de 'la linda' a toa. É realmente uma bela cidade. Européia, diriam alguns, mas eu digo, é uma cidade tipicamente argentina. Surpreende pela organização urbana, pela arquitetura que mescla edifícios coloniais (conservados e valorizados) e prédios modernos, pelo relativo senso cívico da população, pelo comércio forte e vivo, pelos museus, pelas praças protegidas por guardas à noite, pelos passeios peatonais...

     Meu primeiro dia ali foi daquele jeito, corrido. Não dava pra perder tempo, pois era fim de viagem, e eu precisava aproveitar. Cheguei 15h00 na cidade e me hospedei num hostel do centro, em quarto coletivo misto. Fechei passeio pra Cafayate, pro dia seguinte. Voltei pro hostel pra tomar banho e dormir um bocadinho. Recuperado, saí a procurar comida. Bife de Chorizo e cerveja artesanal local. A conta? Quase un regalo. Está barato ir pra Argentina, e virou moda. E isso me incomoda, a coisa da moda. 

    Fechei a noite tomando algumas garrafas da cerveja Salta num pub escuro e quase vazio da peatonal Balcarce. Depois de jantar e perambular pelas ruas, encontrei o famoso calçadão cheio de bares, pubs e boates da capital salteña. Escolhi, escolhi, escolhi e acabei optando pelo estabelecimento mais escuro e aparentemente mais underground do pedaço. Me dei bem, porque conheci uns caras gente fina, que inclusive fizeram questão de pagar a conta desse humilde brasileiro. O dono do bar e mais dois clientes eram, así como yo, torcedores do glorioso Racing Club de Avellaneda. E teve cantoria, na certa.


     
Sí, la nuestra es una hinchada diferente,
No es amarga como la de independiente...

26 - Espera, fronteira e casa

17/05/2011

Espera

     Chegamos de volta a cidade de Uyuni pelas quatro horas da tarde. Havia pouca coisa pra fazer. Estávamos extasiados ainda depois da visita ao grande salar. O bom mesmo seria passar a noite no deserto de sal pra ver o efeito das estrelas no chão branco. Infelizmente não foi possível, fica pra próxima. O que restou foi esperar dentro do hotel, conversando com o restante do pessoal, andar pela cidade, voltar pro hotel e esperar mais.
     Numa das esperas conhecemos um grupo de europeus que passaria a noite ali e no dia seguinte faria a rota até o sal. Uma das integrantes, espanhola braba,  reclamou do estado em que tínhamos deixado o banheiro do nosso quarto (meu e de Francisco, o espanhol). Deixei a discussão pro meu parceiro, pensando 'eles são espanhóis, eles que se entendam'. O camarada explicou que não era culpa nossa, pois  realmente havia um vazamento que impedia o chão de ficar totalmente seco. Acho que ela entendeu.

     Meus 'bolivianos' (dinheiro local) estavam acabando. Tive que escolher entre uma breja ou comida. Optei pela breja, pois gosto de ter a sensação de que fui guerreiro e dormi mesmo com fome. Todos da minha turma iriam para La Paz, só eu faria o caminho contrário, em direção à Villazón/La Quiaca (fronteira entre Bolívia e Argentina). Fiquei triste, com uma saudade antecipada. Ajudei a turma a levar as malas até o ponto de onde sairia o ônibus e me despedi. Esperei mais uma hora na recepção do hotel. Conheci duas argentinas de meia idade, muito simpáticas, conversadeiras, Mirthes e Marcela. Fiz amizade sincera com a moça simples que limpava e ajudava a recepcionar no hotel, uma boliviana cujo nome me esqueci. Fiquei brother do guarda noturno, um argentino de Santa Fé, torcedor do Unión (que subiu pra primeira divisão), poliglota total (5 ou 6 línguas, o caboclo falava). Fui a pé pra estação de trem, mesmo com o convite das argentinas pra eu ir com elas de táxi, e isso arrancou elogios do guarda noturno, que disse num razoável português: 'ele é brassileiro, paulista, e não tem medo de nada!'. Fiz sinal de positivo pro brow, tchauzinho a la V. pras hermanas e parti com a mochila que a essas horas nem pesava mais.


18/05/2011

Fronteira e casa

    A viagem de trem foi apertada e sonada (fiquei num 'dorme-acorda' de dar dor nas costas). Um sujeirto gordo estava ao meu lado e ocupava parte do meu banco. Chegamos em Villazón cedinho, estava frio demais, me deu saudade do clima brasileiro. Peguei o mochilão no bagageiro do trem e e saí a pé em direção a La Quiaca, o lado argentino da fronteira. Dois ingleses de Liverpool, que torciam pro Manchester (achei isso um absurdo tão grande quanto um paulista torcer pro Vasco da Gama), aproveitaram minha determinação de brasileiro raçudo e me seguiram a duras penas.

   Atravessei a fronteira tranquilamente. A área do controle fronteiriço estava vazia e os policiais e funcionários argentinos foram muito gente boa. Estou em casa, foi o que senti. Realmente me sinto muito bem na Argentina. Se nos outros países por onde passei eu me senti quase não estrangeiro, nas terras prateadas do país que é nosso maior rival e melhor amigo ao mesmo tempo me senti (e sinto) quase um nativo. 
     
Saiba mais sobre a longa viagem da fronteira a Salta e sobre os mascadores de coca no próximo capítulo. 

En la frontera...viento y hambre, siempre.