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Epílogo - Certo Jardim Paulistano da América do Sul

  Para Maria José Dupré e  Francisco Marins.

  Para Veri e o García Márquez que ela me ajudou a conhecer (com votos de que o Coronel Aureliano Buendía, quando reencarnar, esteja pronto para amar de verdade).

  Desejando a lembrança e a consideração dos amigos e primos, reais e imaginários.
Janeiro/2012

    A chuva de março passara e eu já fumara o derradeiro cigarro do maço, mas as águas de janeiro começavam a cair e, pelos cálculos baseados na média dos últimos trinta anos, provavelmente avançariam por muitos dias, inundando cidades, destruindo futuros, confundindo lembranças.  Os bons espíritos, apesar da desgraça anunciada, retornavam mais uma vez e me faziam rabiscar em folhas velhas e amareladas, já preenchidas pelas lembranças, memórias novas que ressignificavam as antigas, sem, contudo, dar por encerrado um passado de progresso duvidoso. Arranquei do caderno já escrito as oito folhas que havia prometido num sonho distante, ocorrido em tempo incerto e data imprecisa. Separei uma folha pra cada um, sem deixar ninguém de lado. Um dia mostrarei todas para quem quiser ver.

Chuvas...em março ou janeiro, Ribeirão Preto ou Macondo... (ilustração de Carybé)

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    Eu tive um melhor amigo na infância. Nunca admiti isso pra ele nem pra ninguém, mas hoje admito. Nas listinhas que a gente fazia com os nomes dos amigos por ordem de importância eu sempre o anunciava em quarto ou quinto lugar. Ele, pelo contrário, dizia que normalmente eu era o primeiro da sua lista, mas às vezes, quando brigávamos muito, caia pra segunda posição, e então o Zé Mario, que hoje é advogado bem sucedido, me passava. O melhor amigo morava no mesmo quintal que sua avó, Dona Hermelinda, na casa dos fundos, com seus pais, e tinha uma cachorra preta que um dia me avançou. Os pais dele nunca o deixavam sair pra rua, porque achavam perigoso, e ele vivia querendo brincar de faz de conta. Eu implicava com aquilo de brincar com miniaturas dos comandos em ação - embora no fundo adorasse - porque desejava brincadeiras que fossem mais reais como subir nos telhados, entrar nas construções, jogar pedras nas vidraças, brigar contra a gang do Hulk e do Luizinho, que moravam na maloca da rua Ceará.

  Meu outro amigo, mais velho, mais alto, mais forte e que tinha o pé grande, sujo e calejado, morava em frente à casa da Dona Hermelinda, na avenida Estrada de Ferro mesmo, e tinha um irmão que levava o apelido de Cascão, não sei se por não tomar banho ou se por parecer mesmo com o personagem do Maurício de Sousa.  Sua casa não tinha portão e ele morava com a mãe no cômodo dos fundos que cheirava a mofo. Possuía um Atari velho, cujos PAC MANs e RIVER RAIDs a gente passava tardes e tardes a jogar. Eu gostava do cheiro de mofo daquele quarto, que me soava aconchegante, e gostava de jogar atari, embora nunca conseguisse chegar às fases mais avançadas. Ele também gostava de brincar na rua e tinha mais coragem do que eu pra aprontar coisas erradas e pra enfrentar os inimigos da rua Ceará e da pracinha.
   
    O outro amigo, que tinha coragem de aprontar e de brigar mais que todo mundo, morava abaixo da casa da Dona Maria, a vendedora de gelinhos que tinha um marido chamado Seu Domingos. O menino, meu amigo, era magrelo, pequeno, tomado por cicatrizes, revoltado. Depois de um tempo descobri que era filho adotivo e tinha sido muito maltratado na primeira infância, por isso tinha raiva do mundo. Foi o primeiro moleque que deixei roxo depois de uma briga. Sempre tive medo do sujeito e ele sabia disso e aproveitava minha covardia pra me tripudiar. Fui guardando a raiva dentro do peito até que um dia explodi e bati nele que nem gente grande. Depois disso perdi o medo e o batia sempre que me sentia ofendido ou atacado.  Apesar das brigas, tenho que dizer que sempre lhe gostei, embora não o deixasse entrar dentro da minha casa porque meu pai não confiava nele, e não nego a importância que as brigas que travamos tiveram na minha formação de homem macho.

     No SESI, eu também tive vários amigos, mas dois eram especiais: um que morava perto da minha casa, com o pai, a madrasta e a irmã Cris, e outro que morava na Vila Harmonia, mas passava vários dias da semana na casa da avó, que às vezes me parecia mal assombrada, perto da pracinha. Tive relações conflituosas com os dois. O primeiro me causava inveja por estar sempre sorridente, por ter tênis e roupas melhores que as minhas, por não ter vergonha de conversar com as meninas, por ter dinheiro pra comprar gelinho sempre que quisesse e por achar a vida bela e simples; o segundo me causava raiva por ter vários livros, pronunciar o R feito paulistano, embora tivesse nascido e sido criado no interior, e ser considerado o menino mais inteligente da classe (só porque era filho de gente importante) por todas as professoras, exceto pela Tia Cristina, que me achava disparadamente o melhor e me chamava de Rui Barbosa.

 O imã do cigano tudo atrai. O tempo tudo separa. (ilustração de Carybé)


    Eu adorava brincar com esses amigos, mas nunca tive coragem de juntar todos eles e montar uma turma. Quando meus primos vinham passar alguns dias na minha casa, raramente meus amigos participavam. Eu tinha medo que meus primos gostassem mais dos meus amigos do que de mim e vice-versa, e então evitava misturar as relações. Não sei bem porque tinha esse sentimento. Até pouco tempo não sabia que o tivera. Não sei por que tratava alguns melhor que outros.  

    O fato é que todos esses amigos seguiram suas vidas, enquanto eu sigo a minha. Muitos não conhecem a consideração que guardo por eles e o pranto que lhes chorei por arrependimento e saudade em longas noites chuvosas e quentes  desses verões sombrios do sudeste brasileiro. Não me peçam pra falar sobre tudo isso olhando-os nos olhos. Eu não saberia expressar com palavras sonoras o que penso e sinto caso os encarasse de frente, até porque outros sentimentos viriam à tona e o que quero demonstrar aqui e agora é só amor e amizade.

    Quando a gente é criança e não tem a noção exata de que somos seres individuais (e individualistas) podemos nos escorar e quase nos misturar com outros serezinhos de nossa mesma espécie pra nos livrarmos de nossas dores. Se ficamos tristes, basta ir à casa de um amigo pra sorrir o riso dele e despejar a tristeza no chão. Mas a vida nos leva, de um jeito ou de outro, a nos tornarmos nós mesmos e a nos separarmos do bando. A dor da separação é inevitável e irremediável. É a dor da vida. Cada um procura a seu modo e em vão se apropriar de coisas externas para preencher o buraco que ficou.

     Como venho percebendo isso tudo desde sempre, cada dia de um jeito diferente, resolvi falar aqui com você que andou muito tempo misturado comigo:  se me enchi de planos de viagens, guerras e revoluções e não logrei com isso suprir o insuprível, pelo menos percebi que por todas as ruas que eu caminhar, independentemente da esquina que eu dobrar, no contrário do meu horizonte - que é o que chamam de fundo dos olhos - os passos que andei com vocês estarão sempre a me guiar, como que mostrando que tudo o que está sendo construído em mim agora se assenta numa base feita lá atrás, na infância perdida que vivi comunitariamente antes de saber que eu era alguém sozinho. Se já dobrei a esquina necessária e me submeti a seguir o caminho da dor, o que me resta é aceitar a felicidade que independe dos fatos e das circunstâncias. E eu aceito.



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    Meus amigos reais e imaginários, da infância ou de qualquer época da minha vida, terminei outra viagem, mas meu sonho ficou ainda maior. Se minha América é mesmo infinita, por que não jogo a teimosia de lado e me entrego de uma vez ao inimigo imaginário do norte que por doença desconhecida criei? Nem tente entender...O importante é que mais uma etapa ficou pra trás.

    Tornarei a escrever em maio ou junho deste ano. Quando estiver em Lima, Trujillo, Bogotá, Caracas, ou (mais provável) Cartagena, no meio da Infinita América III, em frente ao mar do Caribe, mando notícias e reafirmo a saudade, o sonho e a esperança que não morrem jamais.

 

Salvem as ilhas perdidas e as montanhas encantadas.

Abraços...




A primeira e a segunda imagem foram extraídas do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez;
A terceira e a quarta, respectivamente, das capas dos livros A Ilha Perdida, de Maria José Dupré, e O Mistério dos Morros Dourados, de Francisco Marins.

30 - As últimas cervejas (ou Na bagagem só eu)

     21/05/2011

    Conforme relatado no post anterior, passei vinte e três horas no ônibus, entre Salta e Puerto Iguazu. Acho que meu corpo nem estranhou o fato de ficar tanto tempo sentado/deitado, pois nos últimos 23 dias eu havia passado por tantos solos diferentes, caminhando, e permanecido sem andar dentro de tantas variedades de veículos terrestres, que àquela altura do campeonato, quando só faltava levantar a taça, meu esqueleto e meus músculos não podiam estranhar mais nada, só seguir inertes. E a inércia nesse caso era mágica e ilógica, impossível de ser mensurada, explicada, entendida.

     Desci na rodoviária de Puerto Iguazu e até estranhei a tranquilidade do lugar. Atravessei uma passarela colorida que leva até a área de embarque intermunicipal e, sentindo o peso da bagagem e o vento da fronteira no rosto, não pude deixar de sentir orgulho de mim mesmo. Eu não havia ganho nenhuma guerra, não havia obtido nenhuma grande promoção no trabalho, não havia desbravado nenhuma região inóspita, continuava tão perdido e tão pobre quanto antes, mas estava terminando uma viagem que me propusera a fazer desde muito tempo, e isso era sim, e continua sendo, motivo de alegria e realização.

     Pensei em prolongar minha estada em Puerto pra terminar a Infinita América II do jeito que começamos, eu e Marcel, a Infinita América I, curtindo a noite da cidade fronteiriça argentina, tomando Quilmes de um litro no gargalo, brincando de ser revolucionário ou bon vivant. Ou os dois. Mas olhei pro céu que podia ser brasileiro ou estrangeiro e percebi que a viagem tinha chegado ao fim. Peguei o coletivo  que me levaria até Foz do Iguaçu e desci num ponto perto da região central, já em terras brasileiras. Tirei uns trocados no banco e parti de moto táxi pra rodoviária da cidade. Devia ser quase cinco horas da tarde e o sol brilhava forte na cidade paranaense. Comprei a passagem pra Araraquara, atravessei a rua morta da parte de baixo da rodoviária e descansei o corpo e a mochila num bar tomado por mesas com propaganda da Brahma e da Skol e por gente de estirpes variadas. Tomei 4 garrafas sozinho, e tomaria mais. A boa e velha Brahma.
    Eu já estava na terceira garrafa, misturando fantasia e realidade, quando um cara que parecia a mistura do Gilberto Gil com certo andarilho que conheci em Araraquara começou a tocar reggaes, sambas e mpbs. Um sujeito da mesa do lado pediu pro músico tocar Ventania, e ele tocou Só para Loucos. Cantei junto, errando a letra, obviamente. Tomei a saideira e deixei vinte reais de gorjeta. O artista estranhou. Respondi que ele merecia e me fui.


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   22/05/2011

   A viagem de volta pra Morada do Sol foi tranquila. Dormi quase o caminho todo, ajudado pela mistura de cevada e álcool que tanto acalma. Os vinte e três dias de viagem passaram voando. Parece que foram vinte e três horas bem vividas. Na rodoviária, não havia ninguém me esperando. Mas Araraquara, como sempre, me recebeu de braços abertos, com um céu azul e uma brisa de outono que lograram me emocionar. Meus pais me esperavam curiosos e admirados, com o almoço quase pronto, e pudemos conversar com um despojamento e uma verdade poucas vezes conseguidos por nós até então.

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    Antes de voltar a trabalhar ainda tive uma semana de férias que aproveitei pra organizar este blog, as fotos, os encontros pra por as conversas em dia. Poucas pessoas se interessaram pelas coisas que vivi e contei aqui, mas justamente essas poucas são as que valem, e são suficientes. E não posso deixar de agradecer a você que leu, acompanhou e tentou compartilhar das experiências desse sujeito contraditório, egoísta e falastrão, que usou muito desse espaço pra se exibir, mas que também tentou, de coração, experimentar o prazer da felicidade compartilhada, por acreditar, embora ainda não consiga colocar a crença em prática, que só ela é verdadeira.
   O combate ao egoísmo continua e continuará pra sempre. Pra isso, precisamos uns dos outros, e por isso quero vocês ao meu lado. E me coloco, com o pouco que hoje tenho, à disposição.