Finalmente chego à postagem número quinze. Quinze que nesse caso é quase meio, quase metade, como é o dia quinze de alguns meses. O fato é que quando cheguei a Machu Picchu, no décimo primeiro dia duma viagem que durou 23 dias, praticamente na metade dela, senti que a parte missioneira daquela caminhada havia chegado ao fim. A cidade perdida dos incas sempre foi um sonho, desde não me lembro quando. Também sonhei com as pirâmide do Egito, mas passou; com Veneza, na Itália, depois que vi uma foto da dita cidade no álbum de figurinhas da Copa de 1990, mas também passou. Sonhos vêm e vão. Machu Picchu veio e ficou. Primeiro como um sonho a mais, como só um sonho. Depois, acho que por ideologia e teimosia, se tornou 'o sonho'. E confesso que me senti tenso durante a parte da viagem que antecedeu a chegada às ruínas da Velha Montanha. Era como se minha ida até lá fosse por obrigação, não por lazer. Porque na verdade, essas viagens têm muito pouco de lazer. Não sei explicar o motivo delas, o que busco com elas, mas sei que preciso (ou precisava, ou precisei [precisarei?]) ir. E fui.
Do quechua pro português:
MACHU PICCHU - Velha Montanha
HUAYNA PICCHU - Jovem Montanha
Só pra lembrar, a chamada trilogia inca é composta pelo Condor (mundo superior, tempo futuro), pelo Puma (mundo atual, tempo presente) e pela Serpente (mundo inferior, tempo passado). Cusco foi planejada no formato de um grande puma, talvez por representar o mundo real, onde as decisões políticas e outras coisas aconteciam realmente. Machu Picchu foi planejada de modo a possuir o formato do Condor, provavelmente por se tratar de um centro de estudos avançados. Na verdade, isso é o que achamos, mas se quer saber com certeza, faça conforme aconselhava certo guia turístico cusqueño de nome esquecido: "pergunte pros incas, só eles podem responder." :p
A mágica do 3 em 1 também existe na cultura inca: Condor/Puma/Serpente
10/05/2011
...e eu me levantei sem a dificuldade que justificadamente poderia sentir. Estava frio e chovia. Sim, chovia, e pensei: 'eu vim pra Machu Picchu em maio porque nessa época do ano teoricamente não chove'. Mas naquele dia daquele maio de 2011 chovia, e eu não pude me conter e praguejei em alta voz palavrões cabeludos.
Me cobri de novo e programei dez minutos de soneca no despertador do meu celular vermelho.
* * *
Minha ideia era sair bem cedo de Águas Calientes rumo ao Parque Arqueológico de Machu Picchu, numa caminhada quase vertical que duraria, segundo informações, cerca de uma hora. Havia a possibilidade de ir de ônibus também, custava quinze dolares, mas normalmente quem sai bem cedinho e vai a pé (muitas pessoas o fazem) consegue chegar antes da turma que segue via ônibus dolarizado. E como só os 400 primeiros a chegar podem escalar Huayna Picchu, a montanha maior que fica dentro da área do Parque Arqueológico e de cima da qual se pode ter uma visão total da cidade perdida, decidi ir a pé, justamente pra tentar fazer a subida da Montanha Jovem.
Dormi mais dez minutos, levantei ouvindo o barulho da chuva (e praguejando), lavei o rosto e escovei os dentes, procurei pelos chocolates que eu havia comprado na noite anterior e praguejei um pouco mais ao lembrar que eles já haviam sido comidos. Chamei meu amigo Daniel, que ainda dormia, e falei, 'mano, acorda logo, não vou esperar muito, temos que ir'. Fiquei esperando lá embaixo, as portas do hotel trancadas e nenhuma das meninas da recepção pra me atender. Nós dois estávamos 'presos' lá dentro.
A tensão aumentava, e a chuva não diminuía. Comecei a bater na porta pra ver se alguém aparecia para abrí-la. Uma das chicas apareceu saída de um cômodo até então secreto para mim. Tinha a cara amassada, claro, e parecia irritada, claro. Eu disse, 'temos que ir, te avisei ontem à noite que sairíamos cedo; podemos deixar parte da bagagem aqui?'. Ela disse 'não chamei vocês antes porque o guia disse que saindo daqui logo depois das quatro da manhã vocês conseguiriam chegar ao parque; podem sim deixar a bagagem aqui'. 'Obrigado, mas não estou dizendo que você deveria ter chamado a gente, só precisa abrir a porta pra nós. desculpe alguma coisa, tô meio nervoso', eu disse (acho que consegui falar isso tudo em espanhol, mesmo estando bem puto).
Cabreiragem. Sim, eu estava cabreiro. Assim que a moça abriu a porta, antes mesmo de botarmos o pé pra fora do hotel, a chuva fraca e fria nos tomou para dentro de si. Puta madre. Fomos até a estação de ônibus, eu e Daniel, sem olhar um pra cara do outro, para ver se compensava e se ainda dava tempo de tomar o busão para o parque. Quando vimos a fila, desistimos do ônibus, compramos capas de chuva e seguimos a pé.
Dormi mais dez minutos, levantei ouvindo o barulho da chuva (e praguejando), lavei o rosto e escovei os dentes, procurei pelos chocolates que eu havia comprado na noite anterior e praguejei um pouco mais ao lembrar que eles já haviam sido comidos. Chamei meu amigo Daniel, que ainda dormia, e falei, 'mano, acorda logo, não vou esperar muito, temos que ir'. Fiquei esperando lá embaixo, as portas do hotel trancadas e nenhuma das meninas da recepção pra me atender. Nós dois estávamos 'presos' lá dentro.
A tensão aumentava, e a chuva não diminuía. Comecei a bater na porta pra ver se alguém aparecia para abrí-la. Uma das chicas apareceu saída de um cômodo até então secreto para mim. Tinha a cara amassada, claro, e parecia irritada, claro. Eu disse, 'temos que ir, te avisei ontem à noite que sairíamos cedo; podemos deixar parte da bagagem aqui?'. Ela disse 'não chamei vocês antes porque o guia disse que saindo daqui logo depois das quatro da manhã vocês conseguiriam chegar ao parque; podem sim deixar a bagagem aqui'. 'Obrigado, mas não estou dizendo que você deveria ter chamado a gente, só precisa abrir a porta pra nós. desculpe alguma coisa, tô meio nervoso', eu disse (acho que consegui falar isso tudo em espanhol, mesmo estando bem puto).
Cabreiragem. Sim, eu estava cabreiro. Assim que a moça abriu a porta, antes mesmo de botarmos o pé pra fora do hotel, a chuva fraca e fria nos tomou para dentro de si. Puta madre. Fomos até a estação de ônibus, eu e Daniel, sem olhar um pra cara do outro, para ver se compensava e se ainda dava tempo de tomar o busão para o parque. Quando vimos a fila, desistimos do ônibus, compramos capas de chuva e seguimos a pé.
* * *
Foi dura e longa a caminhada. Estava escuro e outros caminhantes seguiam à nossa frente com lanternas e celulares ligados para iluminar o chão. Eu havia comprado uma lanterna em Cusco, mas a desgraçada não funcionou. Tivemos que nos juntar a um grupo de europeus para aproveitar a luz irradiada de seus equipamentos sofisticados. O caminho de terra, grama e pedra dava um caráter de peregrinação à trilha e esse simples fato fez meu nervosismo diminuir. Seguimos caminhando na velocidade de marchadores atléticos, acompanhando o curso do rio Urubamba até chegarmos à ponte que o cruza onde tivemos que parar e esperar a liberação da polícia peruana para prosseguirmos. Assim que recebemos o ok dos guardas passamos pela ponte que atravessa o rio e antecede a parte mais difícil da jornada. Seguimos mais um trecho largo de terra molhada e alguns metros a frente iniciamos a subida da montanha, caminhando por trilhas estreitas e escadarias naturais. Águas Calientes fica numa altura aproximada de 2000 m, Machu Picchu 2.400 m. Há uma estrada em formato de caracol por onde os ônibus sobem para vencer a distância (6km) e a diferença de altitude (400m) entre a cidade e o parque. Os peregrinos como nós que encaram fazer a subida a pé 'cortam' esse caracol. É uma subida bem íngreme.
Essa foto eu mesmo tirei e coloquei as setinhas pra tentar convencer as pessoas, movido por impura vaidade, de que foi heroica nossa jornada de Águas Calientes a Machu Picchu. Olha só: o ônibus sobe em ziguezague ou caracol (setas pretas) e nós subimos direto, cortando (seta vermelha). É subida pra mais de metro, cumpadi! Merecemos congratulações!
Daniel e eu. A gente chegou cansado.
Com muito orgulho, sim senhor!
Chegamos exaustos e doloridos à entrada do parque. Ficamos sentados, ofegantes e contemplativos esperando nosso guia chegar e reunir a turma para o passeio guiado. Retirei a permissão, numa espécie de bilheteria, para subir Huayna Picchu. Mas estávamos muito cansados e havia chovido bastante, de modo que a montanha estava escorregadia, e acabamos desistindo da subida. Ou seja, todo aquele esforço pra chegar entre os quatrocentos primeiros havia sido em vão...ou não.
Não sei descrever a emoção e o sentimento que senti nos momentos que passei dentro da cidade perdida. Não sei se houve surpresa ou decepção. Sei que foi como se a vida real tivesse ficado interrompida durante os instantes que passei ali, como se eu vivesse um sonho muito real, lesse um livro muito bom ou visse um filme muito verossímil.
O passeio guiado foi rápido e serviu apenas para obtermos algumas explicações sobre a história e o significado das construções de pedra. O que mais valeu foi o tempo livre que tivemos para passear pela cidadela. Dentro de Machu Picchu meu corpo continuava a doer, mas eu nem pensei em praguejar. A contemplação não anulava a dor, mas amortecia o sofrimento físico, que eu sentia naquele momento, e o sofrimento espiritual, intrínseco a mim, que sinto desde que cheguei a esse planeta de provas e expiações. Aquele estado de contemplação me aproximava do que seria a resignação ideal, que não é ignorante nem inteligente. É uma resignação específica, que nos aproxima do Deus que há em nós.
Não sei descrever a emoção e o sentimento que senti nos momentos que passei dentro da cidade perdida. Não sei se houve surpresa ou decepção. Sei que foi como se a vida real tivesse ficado interrompida durante os instantes que passei ali, como se eu vivesse um sonho muito real, lesse um livro muito bom ou visse um filme muito verossímil.
O passeio guiado foi rápido e serviu apenas para obtermos algumas explicações sobre a história e o significado das construções de pedra. O que mais valeu foi o tempo livre que tivemos para passear pela cidadela. Dentro de Machu Picchu meu corpo continuava a doer, mas eu nem pensei em praguejar. A contemplação não anulava a dor, mas amortecia o sofrimento físico, que eu sentia naquele momento, e o sofrimento espiritual, intrínseco a mim, que sinto desde que cheguei a esse planeta de provas e expiações. Aquele estado de contemplação me aproximava do que seria a resignação ideal, que não é ignorante nem inteligente. É uma resignação específica, que nos aproxima do Deus que há em nós.
Chegará o dia em que escudo e espada serão desnecessários.
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