Vamos juntos e livres por Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina.

18 - Outra vez fronteira

"Os que mandam acreditam que melhor é quem melhor copia. A cultura oficial exalta as virtudes do macaco e do papagaio. A alienação na América Latina: um espetáculo de circo. Importação, impostação: nossas cidades estão cheias de arcos do triunfo, obeliscos e partenons. A Bolívia não tem mar, mas tem almirantes disfarçados de Lord Nelson. Lima não tem chuva, mas tem telhados a duas águas e com calha. Em Manágua, uma das cidades mais quentes do mundo, condenada à fervura perpétua, existem mansões que ostentam soberbas lareiras, e nas festas de Somoza as damas da sociedade exibiam estolas de raposa prateada."

A alienação/2 - Eduardo Galeano


    
     O pensamento acima não é tão recente, nem tão velho. Tem muito de verdade ainda, embora algo tenha começado a mudar. O Brasil não é citado no texto. Andam copiando e admirando o Brasil por aí, dentro e fora de nosso continente. Hermanos, copiem à vontade! Estamos começando a copiá-los também e isso é bom porque aproxima os que foram separados por fronteiras fictícias. Agora, pra vocês de fora, estrangeiros que pensaram poder fazer daqui vosso quintal, minha cultura tem direito autoral.

OBS: Perdoe a arrogância. Não posso deixar de fazer esse tipo revoltado e politizado que na verdade não sou. É que no fundo não perdi a mania de falar no vazio.


12/05/2011

TACNA - PERU


     Há alguns dias eu não assistia televisão deitado numa cama confortável. A última vez tinha sido em La Paz, e eu não estava tão confortável assim, pois o assombroso soroche me massacrava. Estranho, mas me deu saudade do soroche, agora. Em Tacna, no Hotel Sudamericana, tomei um banho como há tempos não tomava, lavando todos os cantos do corpo e do espírito. Cansaço bom, o que eu sentia. Alívio melhor ainda senti depois do banho. E deitei largado naquela cama toda. A colcha era vermelha, se não me engano, e o cobertor marrom claro cheirava a amaciante.

     Entre os inúmeros canais disponíveis encontrei a Globo Internacional e me distraí com alguma minissérie que estava sendo reprisada. Logo adormeci. Não lembro com que ou com quem sonhei. Sei que ao longo da viagem um mesmo sonho se repetiu várias vezes. Eu estava numa fase de não me importar nem prestar muita atenção nos sonhos, então não me lembro exatamente como era esse sonho repetido. Só lembo que era com ela, e ela sabe. E naquela noite, em Tacna, aposto com qualquer espírito que tenha dormido ao meu lado que devo ter sonhado com ela de novo. Aposto.

      Acordei cedo. Eu queria querer ficar na cama. Mas eu não queria. Queria rodar, pra variar. Levantei, alonguei por dez minutos, escovei os dentes mais rapidamente do que deveria (foda-se, ela não estava ali), meti a camisa amarela da seleção brasileira e saí. Fui até o terminal rodoviário me informar como poderia fazer para ir de Tacna, no Peru, a Arica, no Chile. Me disseram que haviam táxis por preço fixo que faziam o trajeto. Eram táxis coletivos. Fechou, pensei.

      Eu que não sou de tomar café da manhã estava a fim de fazer um bom desjejum.. Queria sentar, comer, pensar na vida. Coisas que qualquer pessoa normal que toma café da manhã faz. Mas deve ter algo em mim que me acusa: 'esse cara não combina com café da manhã'. Escolhi cuidadosamente um dos inúmeros bares/lanchonetes que haviam na praça de alimentação da rodoviária, escolhi mais cuidadosamente ainda a mesa à qual iria me sentar, analisei calma e criteriosamente o cardápio, e escolhi: café com leite e pão com manteiga. A moça, de avental e cabelos sujos, me trouxe o pão, que estava gostoso, uma xícara, que estava limpa, uma jarrinha com água quente, o que estranhei, e uma latinha de café com leite em pó. Puta merda, eu queria café com leite mesmo, não café com leite em pó.
      Dali a pouco chegaram três senhoras negras, grandes e fortes, e perguntaram se podiam sentar comigo. Sí, disse, meio que engasgando com um pedaço de pão. Eram falantes, as mulheres. Eu apostaria que eram brasileiras, se não falassem espanhol. Eram colombianas, na verdade. Simpáticas. Alegres. Estranharam quando falei que era brazuca. Perguntaram se haviam muitos negros no Brasil. Eu disse: Brasil es mezclado como Colombia, igual. E senti que elas gostaram de verdade de mim a partir daquele momento. E eu delas. Buenas señoras.

* * *

      A caminhada pelas ruas de Tacna após a malograda (gosto dessa palavra. que mau gosto!) tentativa de tomar um rico café da manhã me rendeu um cansaço bom, aquele que todo caminhante gosta de sentir, e uma frustração pesada: não encontrei nem por decreto a camisa oficial da seleção peruana de futebol. Só em Lima, diziam os vendedores. Só numa próxima viagem, entonces, pensei eu.
 


Apesar de tudo...


  

3 comentários:

  1. cobertor cheirando a amaciante depois de noites em lugares pouco confortáveis é praticamente um presente dos deuses.

    não me lembrava dessa informação: do sonho recorrente na viagem. so lembrava do TEMA recorrente. q pena q vc nao lembra de detalhes, queria saber. :p

    olha a diferença. olha a mudança. hoje, se acontecesse algo semelhante (de desconhecidos pedirem para sentar em minha mesa) eu concordaria e teria até prazer em puxar conversa, saber um pouco de suas histórias. tempos atrás, antes você sabe de que (de quem), eu faria um muxoxo, como quem diz 'tenho escolha?', e me fecharia em meu mundinho.

    malograda(o): verdade, vc usa bastante essa palavra. talvez não seja das mais positivas, mas é gostoso de ler, e é gostoso te ouvir falando.

    gosto muito da ultima foto.
    muito.

    beijo

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  2. aiai, moça exigente. pois é, na verdade o TEMA era recorrente. eu que acabei escrevendo 'errado'. nãO tenho a tua 'exatidão' ao falar das coisas. rs
    eu ainda não sonhava 'bubiças', mas era fechar os olhos e lá vinha você. :p

    quando te mostrei as fotos naquele lugar cheio de árvores, lembro que fizemos um zoom nesta última, porque eu achava que lembrava da legenda dela ('a pesar de todo') e realmente lembrava. :)

    Beijo

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  3. essas referências a 'ela' sempre me arrancam sorrisos. sempre.

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