Vamos juntos e livres por Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina.

7 - De La Paz a Copacabana: uma história especial

05 de maio de 2011

      Mesmo depois de estar próximo do céu, em Chacaltaya, de ter pisado na lua, no famoso Valle, e de ter mascado quantidades absurdas de folhas de coca, o soroche prosseguia me maltratando. Cheguei dos passeios, corri pro hostel pra pegar a mochila e acertar a conta, chamei um táxi e me mandei pro local (em frente ao cemitério municipal) de onde saem os ônibus, vans, micro-ônibus e similares rumo a Copacabana, cidade turística, banhada pelas águas mágicas do Lago Titicaca.


O portão verde à esquerda é o limite do Cemitério de La Paz.

      Fui sentado, na primeira parte da viagem, ao lado de uma mulher que carregava seu filho no colo. Falei pouco com ela durante o trajeto de três horas e meia. Lembro que mais ou menos uma hora após deixarmos La Paz, o Titicaca já podia ser visto com toda sua imponência pela janela do micro-ônibus. A princípio pensei que pudesse ser algum outro lago, mas minha companheira de poltrona confirmou que era mesmo o lago sagrado, situado a quase 4000 metros de altitude.

      A viagem foi tranquila. Em determinado ponto, já perto do final, foi necessário descer do ônibus e atravessar um canal (na verdade, um 'braço' do lago que impede a travessia por terra, pois não há pontes) num bote. O ônibus seguiu numa balsa maior e do outro lado, após a travessia, subimos nele novamente. Para entrar no bote foi necessário comprar um bilhete. Eu estava meio perdido, procurando a bilheteria e quando a encontrei um sujeito que parecia tão perdido quanto eu, porém muito menos preocupado, me perguntou: "de donde eres?"."De Brasil", respondi, e ele disse "Ah, eu também".

     Thiago, se chamava o tal sujeito. Tinha 23 ou 24  anos, não lembro exatamente, mas me recordo bem da sua história de vida, que reproduzo aqui, resumidamente, por enxergá-la como exemplo de amor por uma causa, de desapego e de coragem.

     Nascido e criado em Fortaleza, Thiago parte de sua terra natal rumo a São José dos Campos, após passar no vestibular do ITA, em algum curso de  engenharia. Como a maioria dos universitários, se entrega a uma vida louca, desregrada, entorpecida por substâncias externas e por pensamentos tortos. Insatisfeito com o modelo de vida que levava, passa a buscar algo dentro de si, mas demora a encontrar. Se manda para a Nova Zelândia (ou Austrália? Não me lembro bem) onde passa uma temporada trabalhando, conhecendo a nova cultura e conhecendo a si mesmo. O gosto pelo simples e pela natureza, o desapego às coisas materiais, a busca incessante de respostas...essa soma de fatores fatalmente o leva a procurar meios alternativos de viver. Se torna vegetariano, abandona os vícios (exceto o cigarro) e passa a estudar sobre o poder curador das ervas. De volta ao Brasil, termina de largar a faculdade e parte pra Bolívia, onde vai viver no meio de uma comunidade indígena, aprendendo sobre plantas, magia, rituais e curas. Foi aí que o encontrei, quando ele partia da Bolívia ao Peru, para continuar sua saga.

      Você aí, do outro lado da tela, se acha corajoso?

***

     Em Copacabana, eu e Thiago nos despedimos, com a promessa de mantermos contato. Eu fui prum hostel e ele se pra beira do Titicaca, onde iria acampar. Ele dormiu pensando não sei em que. Eu dormi matutando a história de vida que ele havia me contado, pensando se algum dia, nessa vida ou na próxima, eu encontraria dentro de mim a coragem de partir rumo ao nada, como ele fizera.

     Essa música vai pro Thiago... E pra todo mundo que já fala ou um dia falará sobre amor à vida (clique e ouça). 

Thiago e eu.

      

6 - La Paz: pisando na lua, tocando o céu

05 de maio de 2011



- VALLE DE LA LUNA: Sítio arqueológico localizado a 10 km do centro de La Paz; após séculos e séculos sofrendo erosão, as formações rochosas dali adquiriram um aspecto estranho, segundo alguns, parecido com o solo lunar; há quem diga que a expedição à lua foi algo forjado e que os americanos utilizaram o Valle de la Luna de cenário pra gravação.
- CHACALTAYA: pico montanhoso localizado perto de La Paz; já possuiu a estação de esqui mais alta do mundo.
   

     A boa noite de sono melhorou minha disposição física, mas a dor de cabeça, não obstante minhas orações, permanecia. A manhã estava absolutamente ensolarada. Fiquei no computador do hostel, navegando pela internet enquanto aguardava a van da agência de turismo chegar. E ela chegou no horário. E dentro dela, surpresa,  havia um batalhão de brasileiros (oito, contando comigo) e um casal de austríacos. Pena que não tenho foto de todos juntos.


Arriba!


      Quando vi aquele monte de brasileiros e ouvi aquela algazarra em português me bateu uma alegria tão grande, mas tão grande, que pensei: minhas orações de ontem a noite podem não ter derrubado o soroche, mas serviram pra me trazer a felicidade de volta. Eu não estava em busca de solidão? Não me sentia "em casa" em qualquer país da América do Sul? Que fraqueza era aquela? Deixa pra lá. Que tendência triste essa de se autoflagelar. Qualquer um pode se sentir triste, incapaz, fraco. O importante é  rebater rapidamente esses sentimentos. E outra, já faz tempo que deixei de querer ser O Vencedor.

     A van, verde-amarela por dentro, percorreu várias ruas de La Paz, sempre subindo, pois iríamos primeiro para a montanha Chacaltaya (5.421 metros acima do nível do mar), que fica nos arredores da cidade, e depois para o Valle de la luna, que fica dentro do perímetro urbano, na parte baixa. Passamos por El Alto, na parte alta, acima de La Paz. Na verdade, as cidades de La Paz e El Alto formam uma grande área conurbada, que totaliza quase dois milhões de habitantes.


Sinuosa. 

    O caminho pra Chacaltaya é muito bonito, especialmente a estradinha de terra cheia de curvas, logo abaixo da montanha. A van parou em determinado ponto e de lá,  quem aguentou seguiu a pé, numa escalada de média dificuldade. O vento soprava feroz e frio. Mas eu estava preparado, devidamente agasalhado, tal qual os boliviano do lugar.  Fui até perto do topo, a pouco mais de 5.300 metros. Foi o mais perto do céu que já cheguei

Picos nevados.

Machão?!?

Eu já tô aqui em cima, fazendo foto, e o austríaco sofrendo com a subida, parando pra respirar.

A melhor foto da viagem.

 
    Depois de Chacaltaya, voltamos para a cidade e fomos até o Valle de la luna. Observe as formações rochosas. Parece coisa de outro planeta, ou de algum satélite natural perdido no espaço.


Bandeiras fincadas na lua.

Bizarro...

Vale a pena uma tarde no Valle.


5 - La Paz: caos e soroche

04 de maio de 2011


ALGUMA INFORMAÇÃO:

- ALTIPLANO BOLIVIANO: assim é chamada a região central da Bolívia; trata-se de um imenso planalto, que antecede as Cordilheiras dos Andes.
- SOROCHE (ou mal de altura): ocorre a partir de 2400 metros de altitude; a quantidade de oxigênio na atmosfera começa a diminuir conforme a altitude vai ficando mais elevada e pessoas que não estão acostumadas a essa realidade podem sofrer cefaleia, náuseas, indigestão e indisposição; em casos mais graves, geralmente em lugares muito elevados (principalmente na "zona da morte" - acima de 7000m de altura), pode ocorrer edema cerebral ou pulmonar. 
- OS NATURAIS de La Paz são denominados PACEÑOS.
- LA HOJA DE COCA (a folha de coca): usada pelos povos andinos como analgésico, estimulante, inibidor do apetite e da sede; conhecida desde muito antes do Império Inca; considerada sagrada por muita gente.
PRESTE ATENÇÃO: LA HOJA DE COCA NO ES DROGA! 


 A catedral e as casas sobre os morros - La Paz


    O banheiro do ônibus de dois andares que me levou de Santa Cruz de la Sierra a La Paz estava interditado e o ar condicionado não surtia o efeito desejado no andar de cima, onde meu corpo cansado se encontrava. Foram dezessete horas ali dentro, passando calor e frio, com direito a apenas duas descidas  do ônibus para alongar as pernas.
    A primeira parada foi num restaurante à beira da estrada, para cenar. Na verdade não era bem um  restaurante, mas um imenso "puxadinho" com duas mesas enormes onde várias pessoas comiam juntas. O chão do lugar era de terra batida.
     Sobre uma mesa menor  havia uma panela gigante cheia de arroz misturado com carne de terceira, uma vasilha de mandioca cozida e duas jarras de suco. O mesmo homem que servia a refeição recebia o pagamento, algo em torno de 10 bolivianos (mais ou menos 3 reais, salvo engano). Comi aquilo,  a princípio, com certo receio, mas depois me entreguei. Já ingeri coisa muito pior no Brasil.
      A segunda parada foi logo pela manhã. Eu havia acordado pouco antes do sol nascer e resisti a um sono avassalador pra poder apreciar a aurora no altiplano boliviano. Depois, não consegui mais dormir. Paramos numa cidadezinha chamada Caracollo para comprarmos algo pro desayuno. Ali estava a paisagem que eu fora buscar: as montanhas ao redor, o frio, a terra, o povoado perdido no meio daquele lugar inabitável prum ser humano da minha estirpe. Pensei estar em estado de graça, naquele momento.
     Fiquei ao sol, tentando inutilmente me esquentar, enquanto as pessoas comiam algo no refeitório do mercadinho ao lado. Dois bolivianos também tremiam de frio, perto de mim. Puxei conversa, perguntando se eles sabiam o nome do povoado em que estávamos. Eles disseram que não, que estavam pensando em me perguntar a mesma coisa. Nesse momento, outro sujeito, que estava no mesmo ônibus que eu e com quem eu já havia conversado brevemente na rodoviária de Santa Cruz, se aproximou. Disse que o povoado se chamava Caracollo, situado 3800 metros acima do nível do mar, separado de La Paz por mais ou menos 150 km. Perguntei se ele sabia a que temperatura estávamos. Ele disse que devia estar fazendo uns cinco ou seis graus negativos. Caralho!
      
     De Caracollo a La Paz foram duas horas e meia de sofrimento. O sol batia na janela do ônibus impiedosamente, a cortina curta não permitia que eu conseguisse me proteger por completo do Astro Rei  e uma dorzinha de cabeça chata começava a me incomodar, algo parecido com uma ressaca. O soroche, ou mal das alturas, havia me pegado.

Rua de La Paz

     A rodoviária da capital boliviana é pequena, em vista do tamanho da cidade. Estavam ocorrendo protestos e passeatas pelas ruas de modo que quando informei ao taxista o endereço pra onde eu queria ir ele me disse que era melhor seguir a pé, pois de carro seria impossível chegar. Cazemiro, o homem que eu conhecera na rodoviária de Santa Cruz e com quem conversei em Caracollo, disse que ia mais ou menos perto do local onde ficava meu hostel, então seguimos juntos.
      Andamos vários quarteirões e nada de chegarmos ao local. Notei que Cazemiro não tinha certeza de onde ficava a Calle Aroma, onde estava o hostel. Aquelas calçadas abarrotadas de gente, aquele homem falando um espanhol rápido, quase impossível de entender, a incerteza de estarmos indo pro lugar correto, minha dor de cabeça e o cansaço físico: caos total. Comecei a ficar desconfiado e resolvi parar num posto de informações turísticas. A atendente também não sabia onde era a Calle Aroma. Ligou para alguns lugares e ninguém informava. Começamos a procurar no mapa e depois de um tempo eu acabei encontrando. Realmente era uma vielinha, difícil de se achar.


     Orientado pelo mapa, dispensei logo que pude a companhia de Cazemiro. Achei que ele ia querer cobrar algo por ter me 'guiado', mas não. Ele se despediu me desejando boa sorte com sinceridade. Agradeci e segui rumo ao hostel, numa sequência inacreditável de ladeiras que me fizeram perceber uma vez mais o quanto somos limitados, nós os seres humanos. Cheguei no hostel, deixei as coisas sobre a cama e fui até a agência de turismo ao lado para acertar meus passeios para o dia seguinte.

     Comi umas frutas no almoço, dormi um pouco e logo segui pra andar pela cidade. A dor de cabeça estava terrível, parecia que eu havia bebido todas na noite anterior, tipo quando saio pra tomar uma com meu brother Marcel, mas terminamos por tomar todas, pulando de bar em bar até que não haja mais nenhum aberto. A falta de disposição também me pegava, mas sou guerreiro, ex-carteiro, ex-hamburgueiro, e insisti.

A Calle de las Brujas



      Na Calle de las Brujas - uma rua cheia de lojinhas onde são vendidas ervas, roupas típicas, lembranças de viagem, artesanatos, etc - comprei alguns regalos e um saquinho de HOJAS DE COCA.
   Num café qualquer (onde o garçom adivinhou minha nacionalidade após eu falar três palavras, o que me deixou puto - afinal, que porra era aquela? - será que meu espanhol estava tão abrasileirado assim?)  tomei um chá de coca. Confesso que mesmo depois de bastante tempo não senti que o chá tivesse feito efeito algum, pois o soroche continuava e parecia que não ia acabar nunca mais.
     Uma chuva fina e fria começou a cair, mas isso não me impediu de caminhar até o centro da cidade pra conhecer as praças e os museus principais. O MAM (Museo de Arte Moderna de La Paz) me encantou fortemente. Tirei, na miúda, algumas fotos ali de dentro, pra guardar de recordação e compartilhar. Comprei uma camisa cor de abóbora também. E saí do museu com a o corpo e as roupas seca, após ter andado uns vinte minutos de baixo da garoa paceña, e com a alma lavada. Visitar museus é algo que realmente me purifica. Um dia desses falo mais sobre isso...

   À noite tomei um banho quente, comemorei a eliminação em massa dos times brasileiros da Copa Libertadores (só o Santos, time pequeno que tá querendo ficar grande, permaneceu), rezei agradecendo por estar ali e suplicando pra acordar sem dor de cabeça no dia seguinte, masquei umas folhas de coca com a habilidade de um nativo, e dormi. Acordei no meio da noite com Tribalistas e a velha infância na cabeça. Mas logo dormi de novo.

Foto tirada no museu. Fala algo sobre o deserto...

4 - Santa Cruz de la Sierra

03 de maio de 2011


INFORMAÇÕES
- possui cerca de 1.800.000 habitantes;
- é a cidade mais populosa e mais rica da Bolívia;
- seus habitantes são denominados CRUCEÑOS; 
- muito diferente do resto da Bolívia, muito mais moderna, parece outro país;
- possui muitas universidades onde pessoas de várias partes do mundo (especialmente do Brasil) vão estudar;
FUTEBOL
- no idioma espanhol, torcedor é hincha e torcida é hinchada;


   Pois é. Cheguei em Santa Cruz de la Sierra (eta nome bom de se falar...esse de la Sierra é fantástico) de manhãzinha. Fazia um frio terrível. Tive que reforçar as vestimentas pra suportar. Enquanto eu tirava a jaqueta da mala, ainda no terminal bimodal (estação ferroviária e rodoviária juntas), um sujeito en passant falou: aquí hace frío por la mañana. Eu respondi baixinho: puta que pariu, e como faz.
    Aproveitei e já comprei a passagem para La Paz, cuja partida do ônibus se daria às 17h00. Me restavam cerca de 10 horas pra perambular feito andarilho pelas ruas da cidade mais rica da Bolívia. Bora, então, que andar é comigo mesmo.



  Parei um táxi e pedi pro camarada me deixar na Praça 24 de Setembro. Pra puxar assunto, após dizer meu nome e minha nacionalidade, fui logo perguntando pro taxista se ele era hincha  do Oriente Petrolero ou do Blooming (os dois times locais). Ele respondeu: "soy Oriente, claro!"; e perguntou , juro por Deus, se eu era corintiano. Não tem jeito, tá escrito na testa. Respondi, "por supuesto, hombre de Dios!!!"
    Todos os comércios ao redor da praça 24 de setembro estavam fechados. Sentei num dos bancos e fiquei ali, curtindo aquele frio básico. Revisei a listinha onde constavam os lugares interessantes de Santa Cruz e, ajudado por um mapa, resolvi seguir rumo ao parque El Arenal.


Parque El Arenal

     A mochila estava pesada, o que contrastava absurdamente com a leveza de minha alma. Não vou descrever aqui todos os meus passos em Santa Cruz, mas digo, caminhei até cansar, até à exaustão. Andei demais. Passei pelo El Arenal; pelo Mercado Siete Calles, um aglomerado de lojas que fica no encontro de sete ruas; por todas as praças possíveis e imagináveis; pelo museu etnográfico e pelo museu de arte contemporânea; tomei sorvete, já que à tarde fez calor; tomei cerveja, também por causa do calor; assisti o Barcelona empatar com o Real Madri e ir pra final da Champions; paguei guaraná prum moleque descalço; almocei num restaurante de comida brasileira...Conheci bem o local e posso sugerir com tranquilidade: conheça Santa Cruz de la Sierra; é mais bonita e mais organizada do que muitas cidades brasileiras.








    Ah, claro que comprei a camisa da seleção boliviana. É bonita, a danada, embora seja verde. Aliás, eu gosto dessa cor, gosto da natureza. Meu problema em relação ao verde é só com o Palmeiras mesmo. Mas devo confessar que já vesti, amargurado, a camisa desse time, tão rival do meu Corinthians. Certo dia fui comprar a tal camisa para dar de presente pro meu pai (que torce pra porcada) e como não sabia se comprava a M ou a G, tive que experimentar, já que o velho tem mais ou menos o mesmo corpo que eu. Dia triste, aquele, digno de ser esquecido. Mas comprar a camisa da seleção boliviana trouxe à minha memória a compra da camisa do Palmeiras, confesso. Foi quase um déjàvu, pra mencionar essa canção. Então, repito aqui, fiel aos fatos, sem medo das gozações que sofrerei: já vesti a camisa do Palmeiras e em Santa Cruz de la Sierra me lembrei disso.

A catedral, a praça 24 de setembro, os pombos livres no ar.

Bandeiras. Bolívia, meu amor! Santa Cruz, meu amor também!
(Porque meu coração é grande, sim, senhor!)

3 - No trem da morte, um pouco do Alcorão.

02 de maio de 2011


"...que ela surja de repente como o sol que rompe uma sequência desagradável de dias chuvosos e nublados; que eu esteja pronto para recebê-la e disseminá-la tão logo ela chegar; que seja eu, pois, o escolhido que de tanto esperar se cansa;  e que eu liberte a esperança..." 

(trecho de 'A Esperança' - Verão de 2008)

O Trem da Morte


    Foi uma delícia viajar no Trem da Morte, que de morte não tem nada. O que o trem carrega, na verdade, é vida. Muita vida. Muitas vidas. Famílias inteiras o utilizam para se locomover da fronteira ao interior boliviano (e vice-versa), porque é mais barato ou porque, em alguns casos, não há outra opção.  Famílias que carregam consigo a esperança de uma vida melhor, de um país mais rico e mais justo. Que essa esperança de espera se converta brevemente em esperança de libertação. A Bolívia precisa disso.
    No trem se vê muitas crianças. Alegres, símbolos de uma história que não morre e não morrerá, elas fazem algazarra nos corredores e pulam de banco em banco, sob o olhar não muito atento dos pais. E como são bonitas as crianças bolivianas com suas caras de índio, sínteses perfeitas da esperteza e da inocência, obras do Deus barroco que resolveu mesclar um passado mágico com um futuro mais mágico ainda. 

Estação Ferroviária de Puerto Quijarro, a aventura começa aí

     Nas estações onde há paradas mais longas, mulheres e jovens  sobem ao trem vendendo empanadas, chá, água, biscoito e refeições completas em recipientes de isopor (tipo marmitex). Embora carregasse água e bolachas, não me furtei de experimentar os comes e bebes vendidos a bordo. E os recomendo. Deixe a frescura de lado e se entregue.
    As vozes daquelas vendedoras ainda ecoam nos meus ouvidos (e trazem consigo cheiros e luzes), sem que para isso seja necessário muito esforço, sempre que as lembranças da viagem vêm à minha mente:

"Empanada, empanada!"

"Té de manzanilla!"


"Gracias, senhor! De nada, senhor!"

A espera na estação

    Curti muito a viagem, sobretudo no período da tarde, quando o trem estava vazio e foi possível explorá-lo melhor, feito criança curiosa. Na verdade, entrei no jogo da molecada boliviana, mudando de poltrona a todo momento, andando pelos corredores, botando a cabeça pra fora da janela (a despeito dos cartazes que proibiam tal prática) pra encontrar os melhores ângulos e guardá-los na memória e nas fotografias.

Moleques

    À noite, o vagão lotou e cada passageiro teve que ir para seu devido lugar. Acabou o conforto e as brincadeiras. Acomodei-me na poltrona 10 ou 11, não me lembro exatamente, ao lado de um sujeito moreno, magro, de barba e bigodes ralos  e traços serenos, que lia 'O caçador de pipas' em português. Nos apresentamos, e fiquei sabendo que o homem se chamava Kashif e era paquistanês.
    Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba são duas importantes cidades bolivianas que possuem universidades públicas com vagas sobrando. Estudantes estrangeiros, principalmente brasileiros e argentinos, se encarregam de preencher as tais vagas, sobretudo as dos cursos de medicina. Kashif foi um desses. Incentivado por um amigo que já estava na Bolívia, ele veio também, se formou em medicina e depois se mandou para São Paulo, Brasil, para fazer residência. Estava voltando a Santa Cruz para visitar amigos e resolver algumas pendências deixadas pra trás.
   
      Depois de falarmos sobre vários assuntos, resolvi arriscar algo a respeito de religião e perguntei se Kashif era muçulmano. Ele disse que sim. Perguntei o que ele estava achando de ler 'O caçador de pipas' em português. Ele respondeu que não estava tendo problemas pra entender o idioma e que estava gostando da história, embora (isso ele disse timidamente, provavelmente com medo de ser mal compreendido) não concordasse com visão totalmente anti-taleban apresentada pelo livro.
     Kashif foi a primeira e única pessoa muçulmana, até hoje, com quem conversei na vida. Aproveitei pra demonstrar meu relativo conhecimento e minha enorme curiosidade sobre o Islamismo. Os temas fluíram facilmente e meu interlocutor foi ficando mais a vontade para dar sua opiniões, pois pôde perceber que conversava com alguém sem preconceitos.
     Se das aulas de antropologia da faculdade não consegui guardar comigo grande conhecimento teórico, ao menos adquiri boa capacidade de olhar outras culturas com a máxima neutralidade possível. Cada cultura é uma totalidade, possui uma lógica interna própria, inteligível totalmente apenas para quem nasce dentro dela, mas facilmente compreensível, ainda que em partes, para quem, mesmo sendo "de fora", se proponha a abrir os olhos, os ouvidos e o coração.
   
* * *

     Chegamos em Santa Cruz quando o dia mal havia nascido. Fazia um frio desgraçado. Me despedi de Kashif e saí pela cidade caminhando capenga. Assunto pra próxima postagem.


Allahu Akbar



    
   

2 - Moradas do sol, futebol, pantanais e fronteiras

30 de abril de 2011






      O sábado, 30 de abril de 2011, amanheceu com um sol forte e um céu azul bonito. No inicio da tarde, porém, o tempo já dava sinais de que nublaria. E eu sou um cara que tem sérios problemas com dias assim. Em dias anuviados minha mente fica cheia de nuvens também. Se as nuvens do céu estão cinzas ou negras, minha cabeça fica acinzentada, enfumaçada, e eu acabo ficando triste. Naquela tarde de sábado realmente haviam nuvens sobre (e dentro da) minha cabeça. Nuvens brancas, por sorte.

* * *

       Depois de acompanhar pela TV pública argentina a derrota do Racing pro River Plate e conseguir não ficar puto com isso ("foda-se o futebol argentino, eu tô indo pra Bolívia, porra") soube pelo meu pai que o Santos acabara de eliminar o São Paulo na semifinal do Paulistão. Fiquei alegrasso e falei: "pai, meu Corinthians nem precisa ganhar do seu Palmeiras amanhã, só o fato dos bambis estarem fora da final já  me deixa contente". Ele deu risada, porque sabia que eu falava aquilo da boca pra fora, um pouco pra agradá-lo, um pouco pra botar a emoção e a ansiedade pra fora.

         Na despedida, meu pai me deu um aperto de mão mais firme e me olhou de um modo mais intenso do que costumava fazer. Aquilo não me fez sentir nada especial na hora, mas depois parei pra pensar e vi que algo entre nós realmente estava mudando. O que se passa na cabeça de um pai, e de uma mãe, ao perceber que seu filho já não lhe pertence mais (na verdade nunca pertenceu)?

        Minha irmã, que me levaria até a rodoviária, ficou falando ao telefone até as 17h50 e meu ônibus sairia as 18h10. Ou seja, saímos às pressas, na "nóia". Mas acabou dando tempo e foi bom chegar em cima da hora porque pelo menos não tive que esperar por muito tempo naquele banco gelado que eu compartilhei por breves minutos com mais dois homens que iriam, no mesmo ônibus que eu, até Presidente Prudente. Como a ideia era socializar o máximo possível, já mantive contado verbal com os dois caboclos, homens humildes e vividos, mas não me recordo de seus nomes.

      O ônibus atrasou poucos minutos. Eu queria levar o mochilão comigo pra dentro, mas tive que colocá-lo no bagageiro. A poltrona em que eu deveria me sentar, de nº 27, estava toda emporcalhada. Falei com o motorista e ele disse que eu poderia escolher qualquer outra que estivesse vazia. Então, sentei no fundo do 'carro', saquei o mp3 da pochete, ajeitei os fones no ouvido, selecionei a pasta Fuerza Natural - Gustavo Cerati e fechei os olhos. Enquanto ouvia a primeira canção do álbum eu pensava que, tal qual diz a letra, os tempos, pra mim, também estavam mudando pra melhor...e eu ficando cada vez mais forte.

* * *
 
01 de maio de 2011


       Acordei no trevo de Presidente Venceslau quando Jose, a moça que havia subido no ônibus em Bauru e se sentado ao meu lado, me cutucou dizendo: "to indo, boa viagem pra você, moço!". Retribui falando: "Jose, vai com Deus, boa sorte!". Eu e a simpática figura havíamos conversado por uns quarenta minutos antes de pegarmos no sono. Ela havia contado que trabalhava numa empresa que faz fotos de criança, de cidade em cidade, de porta em porta. Mulher guerreira e simples.Vivia uma vida de viajante, voltando pra casa, onde vivia só com a filha de 17 anos, de quinze em quinze dias. Pra ela, viagem era sinônimo de prisão; pra mim, de libertação.

* * *

      Cheguei em Campo Grande, tomei um café com leite e logo parti pra Corumbá. Eu estava ansioso por esse trecho da viagem que passaria no meio do Pantanal, mas o tempo estava muito feio, chuvoso, frio. Não deu pra observar com muito prazer o caminho nem pra fazer boas fotos. Não deu também pra frear meu pensamento que insistia em seguir por vias obscuras: o que eu estava fazendo ali? havia coisas mais importantes a fazer na vida. o que eu queria provar? 
      Procurei nos arquivos do mp3 a pasta com as músicas de Oswaldo. Eu precisava ouvir Montenegro, o cara que consegue fazer até as piores letras soarem otimistas. E ali, sozinho num ônibus cheio de pessoas estranhas, no meio dum pantanal chuvoso e feio, num devaneio louco, percebi de novo, naquele momento, que no fundo acho que vivo essa vida pra provar pra mim mesmo (e pra quem fez com que eu me tornasse o que sou) que a vida não é um perigo, que (ao contrário do que diz a letra) não há facas no ar, e que, embora seja preciso ter cuidado, o medo é opcional...e desnecessário. Se pra morrer basta estar vivo, vivamos como se fôssemos imortais, com a responsabilidade que isso exige.

Área alagada, Pantanal - MS

      Corumbá também não rendeu boas fotos e não rende boas  lembranças. Cidade um tanto desorganizada, como a maioria das cidades fronteiriças o são. Passei um frio danado na garoupa do moto táxi que peguei, por dez reais, da rodoviária até a aduana. Na aduana, passei sem problemas pro lado boliviano, em Puerto Quijarro, e num táxi  caindo aos pedaços fui até o hostel Tamengo onde fiz amizade com dois alemães e um nativo, todos muito bacanas.

Controle fronteiriço: CORUMBÁ/PUERTO QUIJARRO - BRASIL/BOLÍVIA

     Praticamente todas as ruas de Puerto Quijarro são de terra. Há galinhas, porcos, cachorros. E gente. E carros. E motos. A cidade não tem nada de turístico, mas é dali que sai o trem da morte rumo a Santa Cruz de la Sierra e isso a torna especial. Mas o que a tornou especial pra mim, além do trem, foi o fato do Corinthians ter batido o Palmeiras nos pênaltis e ter ido pra final do Paulistão justamente no dia em que eu  chegara ali, em 01/05/2011. Eu estava sem acesso a internet, louco pra saber o resultado e de repente chega uma mensagem no celular: "Vai Coringão". Ah, é sempre bom lembrar e mencionar essas coisas...

Entrada do Tamengo Hostel - PUERTO QUIJARRO/BOLÍVIA, MEU AMOR!
(Olha a pochete, beibe!)