02 de maio de 2011
"...que ela surja de repente como o sol que rompe uma sequência desagradável de dias chuvosos e nublados; que eu esteja pronto para recebê-la e disseminá-la tão logo ela chegar; que seja eu, pois, o escolhido que de tanto esperar se cansa; e que eu liberte a esperança..."
(trecho de 'A Esperança' - Verão de 2008)
Foi uma delícia viajar no Trem da Morte, que de morte não tem nada. O que o trem carrega, na verdade, é vida. Muita vida. Muitas vidas. Famílias inteiras o utilizam para se locomover da fronteira ao interior boliviano (e vice-versa), porque é mais barato ou porque, em alguns casos, não há outra opção. Famílias que carregam consigo a esperança de uma vida melhor, de um país mais rico e mais justo. Que essa esperança de espera se converta brevemente em esperança de libertação. A Bolívia precisa disso.
(trecho de 'A Esperança' - Verão de 2008)
O Trem da Morte
Foi uma delícia viajar no Trem da Morte, que de morte não tem nada. O que o trem carrega, na verdade, é vida. Muita vida. Muitas vidas. Famílias inteiras o utilizam para se locomover da fronteira ao interior boliviano (e vice-versa), porque é mais barato ou porque, em alguns casos, não há outra opção. Famílias que carregam consigo a esperança de uma vida melhor, de um país mais rico e mais justo. Que essa esperança de espera se converta brevemente em esperança de libertação. A Bolívia precisa disso.
No trem se vê muitas crianças. Alegres, símbolos de uma história que não morre e não morrerá, elas fazem algazarra nos corredores e pulam de banco em banco, sob o olhar não muito atento dos pais. E como são bonitas as crianças bolivianas com suas caras de índio, sínteses perfeitas da esperteza e da inocência, obras do Deus barroco que resolveu mesclar um passado mágico com um futuro mais mágico ainda.
Nas estações onde há paradas mais longas, mulheres e jovens sobem ao trem vendendo empanadas, chá, água, biscoito e refeições completas em recipientes de isopor (tipo marmitex). Embora carregasse água e bolachas, não me furtei de experimentar os comes e bebes vendidos a bordo. E os recomendo. Deixe a frescura de lado e se entregue.
As vozes daquelas vendedoras ainda ecoam nos meus ouvidos (e trazem consigo cheiros e luzes), sem que para isso seja necessário muito esforço, sempre que as lembranças da viagem vêm à minha mente:
As vozes daquelas vendedoras ainda ecoam nos meus ouvidos (e trazem consigo cheiros e luzes), sem que para isso seja necessário muito esforço, sempre que as lembranças da viagem vêm à minha mente:
"Empanada, empanada!"
A espera na estação
Curti muito a viagem, sobretudo no período da tarde, quando o trem estava vazio e foi possível explorá-lo melhor, feito criança curiosa. Na verdade, entrei no jogo da molecada boliviana, mudando de poltrona a todo momento, andando pelos corredores, botando a cabeça pra fora da janela (a despeito dos cartazes que proibiam tal prática) pra encontrar os melhores ângulos e guardá-los na memória e nas fotografias.
À noite, o vagão lotou e cada passageiro teve que ir para seu devido lugar. Acabou o conforto e as brincadeiras. Acomodei-me na poltrona 10 ou 11, não me lembro exatamente, ao lado de um sujeito moreno, magro, de barba e bigodes ralos e traços serenos, que lia 'O caçador de pipas' em português. Nos apresentamos, e fiquei sabendo que o homem se chamava Kashif e era paquistanês.
Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba são duas importantes cidades bolivianas que possuem universidades públicas com vagas sobrando. Estudantes estrangeiros, principalmente brasileiros e argentinos, se encarregam de preencher as tais vagas, sobretudo as dos cursos de medicina. Kashif foi um desses. Incentivado por um amigo que já estava na Bolívia, ele veio também, se formou em medicina e depois se mandou para São Paulo, Brasil, para fazer residência. Estava voltando a Santa Cruz para visitar amigos e resolver algumas pendências deixadas pra trás.
Moleques
À noite, o vagão lotou e cada passageiro teve que ir para seu devido lugar. Acabou o conforto e as brincadeiras. Acomodei-me na poltrona 10 ou 11, não me lembro exatamente, ao lado de um sujeito moreno, magro, de barba e bigodes ralos e traços serenos, que lia 'O caçador de pipas' em português. Nos apresentamos, e fiquei sabendo que o homem se chamava Kashif e era paquistanês.
Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba são duas importantes cidades bolivianas que possuem universidades públicas com vagas sobrando. Estudantes estrangeiros, principalmente brasileiros e argentinos, se encarregam de preencher as tais vagas, sobretudo as dos cursos de medicina. Kashif foi um desses. Incentivado por um amigo que já estava na Bolívia, ele veio também, se formou em medicina e depois se mandou para São Paulo, Brasil, para fazer residência. Estava voltando a Santa Cruz para visitar amigos e resolver algumas pendências deixadas pra trás.
Depois de falarmos sobre vários assuntos, resolvi arriscar algo a respeito de religião e perguntei se Kashif era muçulmano. Ele disse que sim. Perguntei o que ele estava achando de ler 'O caçador de pipas' em português. Ele respondeu que não estava tendo problemas pra entender o idioma e que estava gostando da história, embora (isso ele disse timidamente, provavelmente com medo de ser mal compreendido) não concordasse com visão totalmente anti-taleban apresentada pelo livro.
Kashif foi a primeira e única pessoa muçulmana, até hoje, com quem conversei na vida. Aproveitei pra demonstrar meu relativo conhecimento e minha enorme curiosidade sobre o Islamismo. Os temas fluíram facilmente e meu interlocutor foi ficando mais a vontade para dar sua opiniões, pois pôde perceber que conversava com alguém sem preconceitos.
Se das aulas de antropologia da faculdade não consegui guardar comigo grande conhecimento teórico, ao menos adquiri boa capacidade de olhar outras culturas com a máxima neutralidade possível. Cada cultura é uma totalidade, possui uma lógica interna própria, inteligível totalmente apenas para quem nasce dentro dela, mas facilmente compreensível, ainda que em partes, para quem, mesmo sendo "de fora", se proponha a abrir os olhos, os ouvidos e o coração.
Chegamos em Santa Cruz quando o dia mal havia nascido. Fazia um frio desgraçado. Me despedi de Kashif e saí pela cidade caminhando capenga. Assunto pra próxima postagem.
Kashif foi a primeira e única pessoa muçulmana, até hoje, com quem conversei na vida. Aproveitei pra demonstrar meu relativo conhecimento e minha enorme curiosidade sobre o Islamismo. Os temas fluíram facilmente e meu interlocutor foi ficando mais a vontade para dar sua opiniões, pois pôde perceber que conversava com alguém sem preconceitos.
Se das aulas de antropologia da faculdade não consegui guardar comigo grande conhecimento teórico, ao menos adquiri boa capacidade de olhar outras culturas com a máxima neutralidade possível. Cada cultura é uma totalidade, possui uma lógica interna própria, inteligível totalmente apenas para quem nasce dentro dela, mas facilmente compreensível, ainda que em partes, para quem, mesmo sendo "de fora", se proponha a abrir os olhos, os ouvidos e o coração.
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Chegamos em Santa Cruz quando o dia mal havia nascido. Fazia um frio desgraçado. Me despedi de Kashif e saí pela cidade caminhando capenga. Assunto pra próxima postagem.
Allahu Akbar
eu ainda vou comer uma empanada!
ResponderExcluir***
o que significa mesmo Allahu Akbar?