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Entre um prólogo e um epílogo - A conta que não se acerta




    Foi sorte ou milagre encontrar aquela mulher no meio do deserto. A bicicleta me servira até o ponto em que o chão era mais de pedra que de areia. Depois, quando a areia fofa passou a predominar, tive que abandonar a magrela e seguir a pé. Para onde mesmo eu estava indo? Não sabia. Não conseguia me lembrar sequer qual fora o ponto de partida daquela jornada.
    O que importava no momento era fazer a tal mulher me ouvir. Eu sabia que ela me enxergava, mas uma aflição estranha me dizia que pra obter ajuda seria necessário falar. Falar alto sobre tudo. Gritar humildemente que tudo que eu queria era me livrar de mim mesmo, do calor crônico que assolava meus ossos, da parte ruim do meu passado, do corpo cansado, das virilhas doloridas, dos ombros encurvados que carregavam o peso de um espírito quase barroco.
    Quando cheguei mais perto, gritei com o resto das forças que tinha. A única palavra que saiu foi 'água'. Mas não era água o que eu queria, e sim libertação. A lembrança de filmes, livros e fotos de deserto, porém, forçaram minha boca a gritar o que gritam os perdidos: água. Mas era tarde, porque a mulher não estava mais ali. Desaparecera. Em desespero total tentei correr, mas minhas panturrilhas não obedeciam ou não existiam mais. Olhei feito louco ao redor e só vi areia e vento. Aliás, o próprio vento era feito de areia e logo meu corpo todo foi coberto por ela. Senti que ia desmaiar, embora isso nunca tivesse acontecido comigo eu podia prever, e minha vista, ao invés de escurecer, se encheu de azul, como se o céu que nos protege descesse sobre mim.
   
* * *

     Estava claro que aquilo era um sonho, mas eu não queria acordar nem deixá-la fugir, porque sentia que havia um acerto de contas a ser feito.

    Sede sem fim. Mais que a boca, meu corpo todo clamava por água. Camisa amarela; calça, bolsa e boné azuis; botina; borrachinhas nos pulsos; um relógio com o vidro trincado - os adereços que cobriam meu corpo que só queria estar nu. A vergonha escondida de sempre. O cenário de uma Djalma Dutra que não sai nunca da memória. A caixa d'água do SESC lá no final. E a moça de novo apareceu. Vinha de moto, como sempre, e parou pertinho de mim. Tirou da mochilinha uma garrafa, dessas de atleta, cheia de suco. Me sorriu um sorriso de companheirismo e compreensão e me estendeu a garrafinha esticando o braço direito como se estivesse um pouco tímida, enquanto dizia um 'oi' quase inaudível.
     Eu peguei a garrafa, mas não consegui tomar de pronto o líquido que havia dentro. Antes, chorei sentido. Não derramei lágrima alguma, mas chorei. Chorei o pranto dos orgulhosos que se seguram até o último momento e depois se debulham em soluços que parecem vir de um lugar mais profundo que a alma. Chorei o pranto de gratidão dos ingratos, a gratidão dos que se emocionam rapidamente e depois se esquecem e voltam a agir como se nada tivesse acontecido. Chorei o pranto da criança que fui, que chorava de raiva e amor quando mamãe chegava atrasada pra buscá-la no Jardim da Infância do SESI.
    E bebi o conteúdo da garrafinha de atleta numa golada só, sem perceber se a moça me observava ou não. Não identifiquei exatamente o que tinha ali, mas algo me dava a certeza de que era suco de manga, provavelmente artificial. Devolvi a garrafa vazia, senti no corpo o alívio desanimado do trabalhador braçal que, no meio do expediente, come e bebe de rosto triste, cabeça baixa e ombros encolhidos. Senti a tristeza e a humilhação de todos os trabalhadores marginalizados nesse coração chamado Brasil.
    Mas ela ainda estava ali, vestida em seu uniforme simples de moça trabalhadeira que sonha fazer faculdade e melhorar de vida, me olhando com um acolhimento quase maternal. Depressa me refiz, me senti íntegro de novo, me vesti do orgulho bom. Colocando a garrafinha vazia na mochila, ela disse um 'tchau' bem baixinho, deu partida na moto verde e sumiu na contramão.


* * *

    Acordei com a boca e uma das bochechas molhadas. Um velho, que hora parecia meu pai e hora parecia o avô que só conheci por fotos, segurava minha cabeça nos braços enquanto a mulher que eu havia visto no deserto tentava secar meu rosto com um pano um tanto úmido. Estávamos ainda em alguma parte daquelas areias sem fim, abrigados sob uma cobertura de madeira rodeada por árvores de uma espécie que não pude identificar.
   - Eu não consegui demonstrar o que realmente sentia e por isso meus sonhos e minha juventude foram embora junto com a moça da moto? - perguntei pro homem.
    - Há uma grande diferença entre o que você sente (sentia) e o que você manifesta (manifestou), filho.
    - E como faço pra remediar o mal que fiz e perdoar o que penso que me fizeram?
    - Não há remédio pra agora. O remédio está no futuro, é o futuro, o tempo. Tire o prego que fustiga seu coração. É melhor um coração marcado que um corpo estranho fazendo desgraça dentro do seu peito. Reze pra que os outros façam isso também. Há uma vida toda pela frente. Foi-se o tempo do perdão e em breve o tempo da culpa também fará parte somente do seu passado. Só restarão páginas em branco a serem escritas

     Olhei pro céu escuro, ainda apoiado nos braços de meu avôhai, e rezei pra que o futuro chegasse depressa.

6 comentários:

  1. acho que não consegui alcançar a mensagem, compreender significados, mas achei muito bonito.

    foi possível visualizar tudo, desde as cores, até os personagens, ainda que sem rosto pra mim, desse relato.
    bonito. bem bonito.
    ;)

    bjo

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  2. ah, esqueci de dizer: a primeira parte me lembrou "As Valkirias".
    =)

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  3. Não há mensagem a ser alcançada, beibe. O texto só tem significado pra mim. Fico contente (sempre fico) que tenha achado bonito. beijo

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  4. Velho do ceu, ce ta se superando a cada dia!!!
    Parecia q eu tava lendo um conto de Guimarães Rosa!!! Parabéns meu querido, orgulho de ser seu brother!!!

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  5. Cara, não sei bem como agradecer a boa vontade e o respeito que você sempre tem comigo. Não pelo comentário e comparação absurdamente exagerados que você fez acima, mas pela nossa irmandade mesmo. Tenho esse jeitão reservado e as vezes esquisito (y exquisito también), mas você me entende bem e sabe do tamanho da nossa amizade.

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